domingo, 26 de fevereiro de 2017

Technical Ecstasy

                                                                     O PRINCÍPIO DO FIM





Considerada a banda que deu vida ao Metal, Black Sabbath havia gravado seu primeiro LP, homônimo, em 1970, disco conceitualmente diferente de tudo que já se havia visto e ouvido na música. O LP abre, arrebentando, com a faixa que dá nome ao disco e à banda, e que daria um rumo ao quarteto britânico e a um novo modo de fazer Rock a partir de então: o Heavy Metal.

Black Sabbath, a canção, foi composta pelo baixista, e principal letrista, Geezer Butler, fã incondicional de romances de terror e de magia negra, depois de assistir a um sucesso Cult italiano do gênero chamado "I Tre Volti Della Paura" (As Três Máscaras do Terror) de 1963, exibido com o nome de "Black Sabbath" na Inglaterra e nos Estados Unidos, contando a história de alguém que visitado por Satã (N.I.B., a quarta faixa do mesmo disco, conta a mesma história na versão próprio diabo). Segundo os membros do grupo ela foi inspirada numa experiência real do baixista, que teria visto, em seu quarto, uma figura negra, que despareceu, assim como surgiu, desaparecendo também com um livro de magia negra que Ozzy teria dado ao compositor. História promocional ou não, o fato é que a canção estreou tudo que viria depois, influenciando o Rock britânico, e mundial, tanto ou mais do que os Beatles fizeram na década anterior.

A temática do mal sempre havia feito parte das canções de Rock, a possibilidade de um encontro com o diabo sempre rondara as composições artísticas de todos os tempos, mas ninguém, ainda, havia conseguido registrar de maneira tão eficiente, simples e popular as simbologias do satânico, aliando referencialmente o dito na letra com o clima sugerido pela harmonização dos instrumentos, estrutura musical e  modo de cantar a melodia. Depois de sons de trovoada e chuva forte, com batidas pesadas e andamento extremamente lento (auxilado pelo trítono do diabo), a canção consegue levar qualquer pessoa para o plano do terror e do medo mais profundo, mesmo que não entenda uma só palavra do que diz a letra, somente com o que sugere a música em si. Ela é terrificante sem precisar da explicação, do logos contido no poema.

A canção de abertura de "Black Sabbath" abre também a carreira da banda, pautada na temática do oculto e da maldade humana e social; e abre também as portas do Rock para o Metal Pesado, de onde nasceriam, depois, as bandas mais cultuadas do gênero consequente do que ela criou sob as bigornas de Birmingham.

O disco foi sucesso, de público e de crítica, assim como o segundo, "Paranoid", ainda em 1970; assim como o terceiro, "Master of Reality", no ano seguinte; assim como o quarto, "Vol. 4" e o genial "Sabbath Bloody Sabbath" de 1973. Após um hiato de dois anos, em 1975, lançaram "Sabotage", tipo de álbum que separa ouvintes radicais em dois: os que o amaram e os que o odiaram, principalmente por se ter a impressão de um certo cansaço do grupo consigo mesmo; as canções parecem não seguir uma linha conexa de tema ou de estrutura, dando a entender que havia uma pretensão de seguir novas influências: no caso, o Rock Progressivo, incrivelmente, aquele que surgiu por influência do próprio Sabbath; fato este que se mostrou verdadeiro nos próximos álbuns em que, inclusive, os sintetizadores tomaram espaço cada vez maior na composição das canções; o que poria fim também no Black Sabbath original e clássico: o quarteto, do Rock pesado e sujo, falando do mal, do medo e do oculto.




Black Sabbath

                                                               (A banda)


Todos os integrantes eram de Birmingham, segunda maior cidade do Reino Unido e importante polo industrial da Europa, e filhos de trabalhadores de Classe Média. Começaram a tocar juntos, em 1966, depois que Iommi e  Ward leram, num anúncio, que alguém procurava músicos para formar uma banda; este alguém era John "Ozzy" Osbourne, antigo conhecido de escola de Iommi. Acrescentados, depois, o baixista, Geezer Butler, e o saxofonista, Aker Clarke, decidiram chamar a si próprios de Polka Tulk Blues Band, construindo um reportório de Blues e Rock Clássico. Com a saída de Clarke, decidiram mudar o nome para Earth, mais curto e mais impactante. Porém esse nome não durou muito, pois descobriram que já havia uma outra banda com esse mesmo nome; foi, então, que surgiu Black Sabbath, por sugestão Butler, que já trabalhava na composição da canção homônima.

Já era 1969, e o som da banda mudava rapidamente para o que conhecemos hoje como aquilo que soa como Black Sabbath (clássico), com a gravação de singles que abriram muitas portas e espaços pro grupo, de pubs famosos a estúdios conceituados. O primeiro álbum, também chamado Black Sabbath, veio em 1970, gravado em um único dia. Sobre isso, Tony Iommi diria: "Entramos no estúdio e fizemos tudo num dia só: tocamos nosso repertório daquele tempo e pronto. Achamos até que um dia era tempo demais [para gravar um disco], então viajamos no dia seguinte para tocar na Suíça por um cachê de 20 libras". Além disso, a mixagem do disco também não foi das melhores, mas isso não afetou o sucesso que a novidade intrínseca na obra poderia alcançar: o público e a crítica logo notou que algo novo, e bom, surgia naquele LP com oito músicas pesadas e obscuras. E estavam certos, o álbum "Black Sabbath" pode ser considerado tão influente no Rock quanto "Sgt. Pepper's" dos Beatles, ou mais, afinal, do primeiro álbum de Black Sabbath, surgiu, não só a carreira do próprio grupo, como também a de muitos outros.

Depois do sucesso dos primeiros discos, a banda começou a dar os primeiros sinais de esgotamento já em 1975,  quando do lançamento se "Sabotage", álbum em que a banda passou a experimentar novas sonoridades e estruturas musicais, muito influenciadas pelos mesmo que haviam se influenciados com eles: os grupos de Rock Progressivo e Hard Rock, muitas das faixas chegam a soar muito mais Led Zeppelin que o próprio Led Zeppelin. A formação clássica (Iommi, Ozzy, Butler e Ward) duraria só até 1978, com a gravação de "Never Say Die!"; Ozzy já havia saído em 1977, depois dos shows de "Technical Ecstasy", mas voltou pra gravar os vocais de outro álbum porque o grupo não consegui achar outro que o substituísse. Ozzy, porém, apenas gravou o disco e logo se retirou novamente, não fez um show sequer de promoção. Ozzy, como qualquer grande astro do Rock, também teve seus problemas com excesso de drogas e sexo, além de problemas pessoais, como a morte do pai e o divórcio da primeira esposa. Dos excessos todos, Ozzy se defendeu dizendo que era vítima de perseguição, pois o grupo todo (e todos os grupos) faziam o mesmo, e na mesma quantidade. Contudo, Ozzy, no Black Sabbath, era o único que obrigava o grupo a cancelar shows, ou se apresentar sem o vocalista, simplesmente porque o tal estava em estado de torpor tão deplorável, que não era capaz de se levantar da cama.

Depois da saída de Ozzy, os demais integrantes também saíram e voltaram infinitas vezes, exceto Tony Iommi, o verdadeiro Front Man do grupo; ele, inclusive, se apresentava a frente e no centro do palco, com o vocalista posicionado na lateral, formação nem um pouco usual para uma banda de Rock. A sonoridade de Black Sabbath também tomou um rumo muito diverso daquele que o projetou para o grande público, se aproximando, no início, do Rock Progressivo e, depois, do Hard Rock soando como o Glam Metal de Iron Maiden, banda também influenciada por Black Sabbath: seu nome, inclusive, deriva de um dos clássicos do Sabbath, "Iron Man".

Black Sabbath só retomaria a sonoridade e a formação clássica (mas sem o baterista original) em 2013, com uma turnê internacional e a gravação de inéditas, no derradeiro disco da banda: "13".




Technical Ecstasy

                                                              (White Album)




Deu branco. Assim como os maiores ídolos de Ozzy, The Beatles, Black Sabbath também teve sua fase crítica, iniciada na salada mista chamada "Sabotage", com clímax em "Technical Ecstasy" e desfecho trágico com "Never Say Die!".

O grupo fora genial desde o primeiro disco, sendo inovador e principiador em tudo, e segurou a onda sempre, até que grupos influenciados por ele, mas com pegadas diferentes, passaram a ser também seus concorrentes. Desde "Sabotage" o quarteto nem mesmo era mais quarteto: com a inserção de Gerald Woodruffe nos teclados, um quinto elemento surgia mudando a cara do som e o som dos caras, cada vez mais próximo do Hard Rock e do Progressivo. Assim, o Black Sabbath se tornava mais técnica e menos performática, o que acabaria por diminuir a importância de Ozzy, algo que ele sentiu e reclamou ao desabafar que os solos de Iommi mais pareciam parte de um grupo de Jazz, não de Rock.

A crise, em 1975 e 1976, também era econômica: os membros do grupo passavam por dificuldades financeiras, tendo gastado mais do que recebiam - o que, aliás, era fato corriqueiro em qualquer parte do globo em meados dos anos 1970. O uso e o abuso de drogas ilegais também fez parte do cotidiano deste grupo de sucesso - outro fato corriqueiro no mundo do Rock desde meados dos anos 1960 -, e, com isso: as diferenças postas em cheque, a incapacidade de compromisso e de organização exacerbadas, sendo o mais prejudicador Ozzy Osbourne (em constantes discussões com Tony Iommi e comuns faltas e atrasos a shows contratados) o começo do fim da banda se mostrava aparente.

Assim como os Beatles, o Black Sabbath também hasteou sua bandeira de rendição ao publicar um álbum branco em meio a crise, com esperança de melhora (It's All Right), mas em claro desacordo geral entre os integrantes; logo depois das turnês do álbum, Ozzy avisou que não voltaria mais a compor ou se apresentar com o Sabbath; mas, não tendo achado outro vocalista que o contentasse, Iommi pediu que Ozzy ao menos gravasse os vocais de "Never Say Die!"; Ozzy atendeu ao pedido e voltou a sair do grupo logo que terminadas as gravações. Era fim quase definitivo da formação clássica de Black Sabbath.

O álbum branco da banda mais dark da primeira metade dos anos 1970 era uma pá de cal no que representava o obscuro, o oculto, o medo, o terror, a guerra, a discórdia e o mal presente (e escondido) no homem, cantados nas letras divinas de Black Sabbath.

A grande diferença entre o Branco dos Beatles e o Branco do Sabbath é o resultado final: o quarteto de Liverpool deu o máximo de si, apesar das divergências, e publicou seu álbum mais icônico; o quarteto de Birmingham não se esmerou tanto nas composições, apesar da esperança, e publicou um dos álbuns mais desprezados pelos fãs.


Abrindo com "Back Street Kids", o Black Sabbath tenta dar a impressão, num Rock'n'Roll bom, mas leve (para os padrões Sabbath), quase dançante até, de que nada pode desintegrar a integridade do som e do espírito de quem cresceu com os garotos da rua de trás, alegoria muito usada por quem pretende se dizer do contra, à margem do usual, comportado e oficial. Porém não é exatamente o que canção mostra, nem o restante do disco, como veremos a seguir. A música soa mais Pop do que Rock, não fosse Black Sabbath, talvez não fosse respeitada por qualquer ouvinte sério de Hard e Metal; por isso, parece clara a intenção do grupo de se adequar aos novos tempos 'Brights' que viriam dali por diante.

Há uma desconformação entre letra e música, com a primeira dizendo que "Nobody I know will ever take my Rock'n'Roll away from me" (Ninguém que eu conheça vai levar meu Rock'n'Roll de mim) e a segunda querendo que o ouvinte balance os quadris e os ombros como só a melhor música Pop pretende e consegue; música pra colocar qualquer um nas rádios.

Na seguinte, "You Won't Change Me", o som lembra o desespero e o terror dos primeiros anos de Sabbath, mas com o mesmo tema de "Back Street Kids": "I am what I am / Nobody will ever change my ways". Nesta canção, o que se diz e o que se ouve se encaixam com maior coerência, porém ainda há aquela pequena dose de lamentação, no modo de cantar e no arranjo dos instrumentistas, que ainda deixam de confirmar fé plena no que se pretende expressar. Depois de declarar a máxima rebelde juvenil do Rock'n'Roll: não preciso de dinheiro e vivo o dia de hoje, o andamento pesado alivia um pouco e dá lugar a uma levada mais branda, onde o eu-lírico tenciona deixar de se lamentar para ouvir seu interlocutor, mesmo sabendo que isso não vai mudar em nada seu jeito. Mas, como já dito aqui antes, não é o que a evolução do disco vai mostrando, desde a letra até a instrumentação, com aquela deixando a obscuridade de lado e tratando de temas mais cotidianos e terrenos e esta deixando-se levar por influências do novo Hard Rock que surgia naquele tempo.

Há, na canção, também, referência muito transparente aos Beatles ao se notar inserido na letra um verso que também lembra a de uma das mais famosas do quarteto de Liverpool: "Nobody's gonna change my world" (Nothing's gonna change my world, Across The Universe), juntamente com uma guinada na música que a faz soar muito como as velhas canções do grupo extinto em 1970. Há que se dizer aqui que, ao menos Ozzy (ou o único a confessar) admirava os Beatles como quem admira a um Deus. Mais uma razão pra desconfiar-se que talvez esse disco seja mesmo o "White Album" de Black Sabbath anunciando seu fim no meio de uma convivência arrastada e conturbada.

Ainda na mesma onda: não presto, mas vou continuar assim, "It's Alright" vem ainda mais cristalina que as anteriores, e ainda mais Beatles que estas também, tanto na letra, que soa esperançosa (novidade no Black Sabbath), como na toada, que, se alguém dissesse ser uma esquecida nos arquivos da Apple, qualquer um acreditaria; soa tanto como Beatles, que foi cantada inclusive pelo baterista,  Bill Ward, como fosse uma dissonante na obra completa da banda, assim como era quando Ringo Starr era colocado pra cantar.

A canção começa e termina com o eu-lírico explicando que, apesar de estarem a procura de iniquidades, nunca encontrão, por isso a certeza de que tudo está bem:


"Told you once about your friends and neighbours
They were always seeking but they'll never find it
It's alright, cuz it's alright"

(Black Sabbath - Technical Ecstasy - Criteria
Studios: Miami; EUA, 1976)


É preciso também relembrar que os integrantes, neste período, enfrentavam graves problemas financeiros e pessoais; portanto, esse mantra esperançoso servia também como um bom conselho para o músicos do grupo principalmente.

"Gypsy", a quarta canção do disco, volta à temática do oculto, mas ainda se parece muito com o que faziam outras bandas de meados dos anos 1970; o som lembra muito o Hard Rock de Led Zeppelin e The Who, assim como o modo de cantar a musa, endeusada e empoderada, diante de um súdito fraco e vacilante. O arranjo também flerta com o Art Rock ao incluir um piano tocado à moda Supertrump, com direito a backing vocals feminilizantes. Se fosse uma tentativa de popularizar o ocultismo numa música leve e palatável, pode ser que tenha funcionado, mas se foi somente um modo de falar sobre mais do mesmo, mas com uma nova roupagem, pessoalmente, me parece uma bobagem do princípio ao fim.

Uma das letras mais intrigantes e uma das músicas mais empolgantes do disco, "All Moving Parts (Stand Still)" lembra mais o Heavy Metal do Sabbath que as anteriores, com letra difícil de decifrar e levada pesada. Mesmo assim, a inclusão dos teclados e as muitas viradas no decorrer da canção não deixam dúvidas sobre o quanto os caras de Birmingham queriam soar modernos como seus herdeiros no Hard Rock.

A letra traz o sentimento de alguém derrotado por aquele contra quem batalhava, talvez alguém representando o poder da guerra, onde o mais forte e mais violento é que vence. Sabendo-se que Ozzy e seus companheiros eram continuadores do pacifismo dos anos 1960, apesar de serem do Metal, pode ser uma boa dica de início pra encontrar a ponta desse novelo a ser desenrolado; principalmente se considerar-se que os vencedores, os Estados Unidos da América do Norte, se auto intitulavam salvadores do mundo e propagadores da paz e da liberdade.


"And he's saying all men should all be free
What a combination, peace and radiation
And he's saying free men should fight for me
Just like his momma, he seems to get his pleasure from pain
And the rain, ain't that strange? Very strange?"


(Black Sabbath - Technical Ecstasy - Criteria
Studios: Miami; EUA, 1976)


Assim, pode-se imaginar que o vencedor, aqui repudiado, pudesse ser aquele que, com ajuda da irradiação (bomba H), conquistou a paz e levou a liberdade àqueles que temiam sua ira.

Voltando ao início do disco, o Rock, além de servir como base de rebeldia e âncora de segurança, agora também é cantado como remédio certo e urgente pra quem não aguenta mais ouvir falar das voltas que o mundo dá:


"Well i'm sick and tired of hearing 'bout the world and its hang ups
Gonna get myself together,
Take a ride downtown
Gotta see my rock 'n' roll doctor
Gotta see my rock 'n' roll doctor
Gotta see my rock 'n' roll doctor
Gotta see him, see him today
He's gonna blow me away"


(Black Sabbath - Technical Ecstasy - Criteria
Studios: Miami; EUA, 1976)


"Rock'n'Roll Doctor" é bom, direto e empolgante, como deve ser qualquer remédio que se preste a acabar com o tédio cotidiano. Se você não procura reflexões e foge de problemas, esse respiro no lamaçal da maldade humana, de Black Sabbath, é uma boa pedida pra noite toda.

 "She's Gone". Letra composta por Ozzy depois de divorciar-se de sua primeira esposa, é lenta, dramática e pesada. Apesar de soar como balada, talvez seja a canção do disco que mais se aproxime do que havia sido antes o Black Sabbath: banda com temática obscura e sem finais esperançosos, justamente o oposto do que se ouviu até a canção sexta da obra.

A letra fala do lamento no fim de um relacionamento, e a interpretação de Ozzy é tão autentica e sincera, que o drama descrito se torna peso pra canção, o que faz o ouvinte retornar ao clima de ocultismo presente nos primeiro LPs da banda. É uma interpretação emocionante e imperdível.

"Technical Ecstasy" termina com chave de ouro. Apesar da letra ainda ser sobre o cotidiano do homem comum num lugar qualquer e a música também partir da influência do Progressivo e do Hard Rock, "Dirty Women"  é muito boa e bem feita; tanto, que foi presença obrigatória nos shows da banda, com ou sem Ozzy.

É sobre um homem que, ao buscar prazer, e sem ter com quem, mesmo sabendo que seria uma desvantagem e não uma vitória, se submete à conquista rápida e eficiente comprando uma prostituta que lhe sirva.

Tanto a letra quanto a música são indicações do que se tornaria o Black Sabbath no fim dos anos 1970 e nos anos 1980, banda de primorosa atuação técnica cantando sobre angústias mais humanas.

"Technical Ecstasy", o começo do fim de uma formação e sonoridade clássicas, iniciou tentando dizer que nada mudaria o Rock'n'Roll do Black Sabbath, ou o próprio Black Sabbath, mas não conseguiu manter sua promessa nem mesmo até a última faixa do LP, e, ao contrário, provou que tudo tem mesmo um fim, sobretudo aquele ou aquilo que encabeçou uma virada nos rumos estéticos e/ou ideológicos de qualquer movimento. O Hard Rock virou Heavy Metal depois de Black Sabbath e o Black Sabbath virou lenda depois do Heavy Metal: nunca mais Black Sabbath, nunca mais Heavy Metal, e vice-versa.



















REFERÊNCIAS


Site

Black Sabbath


Crítica

(Black Sabbath)

Collectorsroom
Plano Crítico
Na Mira do Groove
Aumenta que isso é Rock'n'Roll
O Globo
Whiplash (13)


(Technical Ecstasy)

Whiplash
El Portal Del metal
Metallizeo
Mundo Controverso


sábado, 28 de janeiro de 2017

CARTOLA II

Quando o poema ia lento...

CARTOLA



Angenor de Oliveira nasceu em 11 de outubro de 1908 do casamento de Sebastião Joaquim de Oliveira com Aída Gomes de Oliveira no Rio de Janeiro.

Era o mais velho de oito irmãos e, sendo filho de artista (seu pai tocava violão e cavaquinho), logo cedo tomou gosto pela música, sobretudo pelo samba. O avô materno havia sido escravo em Macaé, mas, depois da assinatura Lei Áurea, foi contratado por uma família residente no Bairro do Catete na cidade do Rio, onde, mais tarde, nasceu Angenor.

Quando da morte de seu avô materno, a família passou a ter problemas pra se sustentar, então mudaram-se para o bairro das Laranjeiras, onde passou a se apresentar tocando cavaquinho com o pai. Mais tarde, porém, ainda por motivos financeiros, a família foi para o Morro da Mangueira, um pequeno povoado com menos de cinquenta barracos nesse tempo. Foi ali que conheceu e seu tornou amigo de Carlos Cachaça, com quem fez, em parceria, grande parte de seus sambas.

Ao contar dezessete anos, sua mãe faleceu, tragédia esta que marcaria ainda mais sua vida, já que as mudanças todas, nela, foram marcadas por fatalidades. Com a morte da mãe, sua relação com o pai desandou, este o acusava de não querer seriedade com a vida e de preferir a vadiagem ao trabalho. O clima se intensificou a ponto de se agredirem fisicamente, culminando na saída de Cartola da casa do pai.

Cartola passou então a viver de bicos e perambulando pelas ruas. Nesse período é que ganhou o apelido de Cartola, por causa de um chapéu coco que usava pra evitar que a sujeira da construção caísse em sua cabeça enquanto trabalhava como ajudante de pedreiro; dizia que tinha o melhor trabalho do mundo, pois, além de conseguir um bom dinheiro, também podia gastá-lo com mulheres (por causa de seu gosto por elas, e suas frequentes visitas à zonas de meretrício, adquiriu diversas doenças venéreas, o que lhe causou ainda mais debilitação); foi quando uma vizinha, Deolinda, passou a cuidar dele. Mesmo casada, acabou se envolvendo com o futuro sambista, deixando a casa do marido, com a filha, para viver com Angenor. Cartola, como os demais moradores do barraco (o casal o dividia com amigos), não trabalhava, eram todos sustentados com o trabalho doméstico de Deolinda , e vivia se metendo em brigas e confusões com outros boêmios em suas noitadas pelas ruas da cidade. Este grupo de amigos, e arruaceiros, mais tarde, formaria o núcleo originário do Bloco Da Mangueira, depois Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira; o nome foi dado porque, a partir da Central do Brasil, a Mangueira era a primeira parada do Trem Metropolitano.

Sua vida de boêmio e compositor só passou a gerar lucros em 1930, quando foi procurado por Mário Reis que pretendia comprar um de seus sambas. Cartola vendeu a Mário Reis "Que Infeliz Sorte"; a gravação fez com que, pela primeira vez, fosse ouvido e reconhecido fora do Morro da Mangueira.

Até 1940, sua vida e sua carreira eram de sucesso, na Mangueira e fora dela, mas, a partir deste ano, com a nova direção da Escola de Samba e o claro descaso da Gravadora com seu trabalho, Cartola viu seus sambas serem rejeitados pela Mangueira (sua escola do coração) e pelos interpretes dos estúdios. Até 1947 se viu impossibilitado de compor e se apresentar por causa de uma meningite, que o deixou alguns dias em estado de coma e mais um ano dependendo de muletas para se locomover. Se mudou para Nilópolis por ter vergonha de seu estado físico e profissional, onde era cuidado, mais uma vez, por Deolinda. Mas, pouco depois, ela também viria a falecer.

As coisas só fizeram piorar até por volta de 1950, quando Dona Zica o encontrou muito maltratado: entregue à bebida, desdentado, fraco e com a face desfigurada por causa de uma infecção no nariz. Dona Zica o levou para sua casa, na Mangueira, ela já o conhecia dos tempos de fama e sucesso, e seria sua nova e definitiva esposa.

Até 1957, ajudou a esposa trabalhando em empregos temporários e mal remunerados, entre eles, vigia e lavador de carros de um edifício em Ipanema, onde o cronista e jornalista Sérgio Porto o encontrou e o reconheceu, passando a partir de então a lhe dar uma ajuda, através de seus contatos, pra que sua carreira reiniciasse.

Depois de um trabalho como contínuo num jornal e algumas apresentações, conseguidos com a ajuda do fã e amigo jornalista, Cartola e Dona Zica abrem juntos um restaurante, O Zicartola, onde ela cozinhava e ele recebia amigos e intelectuais em uma roda de samba. A fórmula foi um sucesso, mas durou pouco: por falta de tino administrativo, não conseguiram fazer com que o restaurante lucrasse o quanto podia. Em dois anos o restaurante fechava suas portas.

Na década de 1970, veio a consagração definitiva, Cartola, amado por estudantes e intelectuais do Rio, era chamado a se apresentar em praticamente todos os eventos e debates promovidos pela juventude engajada da cidade. Assinou contrato com a Gravadora Marcus Pereira e iniciou o registro de "Cartola", seu primeiro álbum de estúdio, até então era conhecido por gravações piratas ao vivo e por interpretações de cantores famosos. O disco fez tanto sucesso, que dois anos depois nasceu "Cartola II" como uma continuação do primeiro e com maior sucesso de vendas e crítica. Este, de 1976, também se chamava "Cartola", mas se convencionou chamá-lo de "Cartola II" para que se pudesse diferenciar as duas joias da produção fonográfica brasileira.


Sua carreira e vida pessoal, finalmente, se estabilizaria até 1980, ano em que faleceu.


Pode-se dizer que Cartola sofreu a fatalidade comum ao mulato pobre brasileiro até a velhice (falta de oportunidade justa e falta de consolo social; só não sofreu de falta de amor, isto, aliás, sempre teve de sobra, sendo, inclusive, aquilo que muitas vezes lhe colocou de volta no trilho da vida ganha com arte); aos 60 anos, passou a gozar de fama e sucesso com o que tinha vivido, guardado e reconstruído em suas canções.




O LAMENTO NO MORRO


O LP foi gravado depois do sucesso alcançado com o primeiro da retomada, que se chamava simplesmente  "Cartola"; talvez, com esperança de atingir o mesmo sucesso, ou superá-lo, também foi nomeado "Cartola"; este, agora com o compositor e sua amada, Dona Zica (o primeiro trazia somente o Cartola sorridente), estampados na capa ficou conhecido como "Cartola II", como forma de distinção entre ambos. Porém, ao contrário do álbum de 1974, este trazia produção mais requintada, e versos mais tristes embalados em andamentos mais arrastados. Ambos os discos abordam a tristeza da desilusão amorosa, mas o primeiro soa mais esperançoso que o segundo.

"Cartola II" parece até uma coletânea de sucessos, pois o ouvinte, inconsciente da discografia, pode acompanhar a reprodução da obra cantarolando, do princípio ao fim, todas as faixas; a começar por "O Mundo É Um Moinho". Lamentosamente, o choro da flauta nos introduz no disco acompanhado da voz indecisa do violão e, depois, da do Cartola cantando: "Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora de partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar". Esse lamento indeciso continua até o fim dos versos e estrofes. Quando digo lamento, além do tom e andamento da canção, é porque se percebe isso claramente nas palavras da canção, onde o eu-lírico tenta avisar a uma jovem, que vai entrando na vida com euforia, o quanto esta vida vai maltratá-la e torná-la mais uma pessoa desiludida. Quando digo indeciso, é porque, assim como os instrumentos citados, a voz do interprete entra na canção fraca e quase vacilante, parecendo mesmo alguém expressando indecisão, mas não por não saber do que fala, e sim por não estar certo se deve mesmo falar o que sabe, e, talvez até, por ter esperança de que seja diferente com esta que agora se aventura pela vida.

Porém, na segunda parte da canção, quando é repetido todo o texto, tudo toma corpo: o violão, a flauta, a voz... e a percussão se mostra, trazendo mais força enfática ao que se quer dizer com as palavras, que se resume a algo como 'você não é diferente de mim, vai sonhar e amar como eu amei, vai cair e sofrer como eu sofri':

"Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

E põe um ponto final no que pretende explicar.


"Minha", a seguir, vem mais animada no andamento e na riqueza de instrumentação desde o início, mas com aquela tristeza vingativa na voz e no texto, ao reclamar que a musa nunca teria sido sua. Interessante é o uso da dialética na canção, que tem, como título, o pronome possessivo "Minha" e, como anáfora, "Minha? Quem disse que ela foi minha?", negando assim a proposição posta de que um certo alguém teria pertencido ao eu-lírico, hipótese refutada com argumentação lógica e voz embargada como quem lamenta não ter tido e como quem gostaria de se vingar de quem o tivesse iludido, e que agora se ilude por não saber da verdade:

"Minha
Quem disse que ela foi minha
Se fosse seria a rainha
Que sempre vinha
Aos sonhos meus

Minha
Ela não foi um só instante
Como mentiam as cartomantes
Como eram falsas as bolas de cristal"

Minha
Repete agora esta cigana
Lembrando fatos envelhecidos
Que já não ferem mais os meus ouvidos"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

Com um pouco mais de alegria, "Sala de Recepção", com Creusa, passa da musa mulher para a musa morada: aproveitando a fama e o sucesso da escola de samba do Morro da Mangueira e o descaso do povo do asfalto com alegria da gente que ali vive, o eu-lírico descreve a felicidade do povo simples do morro, que é feliz justamente por ser simples; perguntado como poderia, sendo tão pobre, ainda assim cantar o Morro da Mangueira, dá, como resposta, que é porque não deseja nada além disso: cantar e ser ouvido.

"Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?

Pois então saiba que não desejamos mais nada
A noite, a lua prateada
Silenciosa, ouve as nossas canções

Tem lá no alto um cruzeiro
Onde fazemos nossas orações
E temos orgulho de ser os primeiros campeões

Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora
E as outras escolas até choram
Invejando a tua posição

Minha mangueira essa sala de recepção
Aqui se abraça inimigo
Como se fosse irmão"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

E, por isso, a paz e a felicidade é que reinam na "sala e recepção" do morador da Mangueira.

Na canção seguinte, "Não posso viver sem ela", ainda mais ligeira que a anterior, o lamento se torna ação efetiva para o eu-lírico, que usa suas mágoas a fim de tentar convencer a mulher amada a voltar pro lar, abandonado por ela.

Perceba que o lamento é sempre a 'arma' usada pelo eu-lírico nos enfrentamentos até aqui; mesmo ao falar da felicidade do povo da Mangueira, esta viria do fato de poder lamentar (cantar):

"Tive que contar a minha vida
A esta mulher fingida
Que me faz sofrer
Esta dor que tanto me crucía
Roubou toda a alegria
Do meu viver

Pode ser que ela ouvindo os meus ais
Volte ao lar pra viver em paz

Esta malvada bem sabe o mal que me fez
Mas não faz mal eu lhe perdoo outra vez
Meu coração vive reclamando noite e dia
Por isso eu peço que ela volte para a minha companhia"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

Mas o canto volta a se arrastar! Aquele que pensava que a alegria, mesmo lamentosa, tomaria conta do resto do disco, num crescendo de firme propósito, se enganou. Antes de terminar o Lado A, ouvimos novamente vozes vacilantes de um violão e de um fagote introduzindo o ouvinte na tristeza do eu-lírico. Genialmente, é colocado o fagote como instrumento melódico nessa introdução, fraseando a linha que seria cantada na segunda parte pelo interprete. O som grave do fagote, o mais grave dos instrumentos de sopro de madeira, aliado ao dedilhado reticente do violão, dão tamanha ênfase ao tom melancólico que viria a seguir, que se torna impossível não parar o que se faz pra dar atenção à tragédia a ser contada.

Contudo, a tragédia aqui contada não seria totalmente passiva: mais uma vez, o lamento se torna, na canção, instrumento de ação contra o opressor. Acabando a primeira parte, em que o fagote é só lamento para o violão, a voz do interprete entra, agora acompanhado também da energia da percussão, dizendo enfaticamente que precisa se afastar do que faz o eu-lírico sofrer:

"Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

A ação vem do lamento também, mas não é usada propriamente como arma nesta canção, mas como motivo pra fazer diferente: "Sorrir pra não chorar"; pois, provavelmente, desta vez, o sofrimento fosse tanto, que não haveria choro que bastasse.

Tenho esta canção como o clássico dos clássicos de Cartola, ainda mais do que "As rosas não falam", ou qualquer outra. Principalmente, por trazer à tona a verve de rebeldia integrante da personalidade do autor; sempre que se sentia vilipendiado por algum motivo, em sua mocidade sobretudo, o poeta se abandonava em revide verbal ou físico, o que acabou lhe dando fama de arruaceiro e lhe rendendo algumas prisões  por desordem da ordem pública.

Na segunda estrofe, são apenas duas, repetidas muitas vezes, o eu-lírico demonstra sua mais verdadeira angústia: a falta de vida. Coisas tão simples, tão básicas, tão necessárias e, ao mesmo tempo, tão distantes de quem, na pobreza, se vê confinado nas intrigas e nas obrigações das pessoas e das cidades. Sair, se afastar, procurar motivo pra sorrir seria um outro modo de se rebelar contra a opressão, as outras seriam destruí-la ou modificá-la, mas o que poderia um poeta pobre do morro fazer além de fugir?

"Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar

Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)


"Peito Vazio". No fim do Lado A, uma Seresta mansa, doce, chorosa...  sobre a saudade desce nos corações pra alentar as mágoas todas de todos. A partir do nada a dizer, o compositor pôde construir uma pérola sobre a angústia de não conseguir se expressar ou expressar o que não sente aquele tomado pela saudade. Esta Seresta é um adendo destoante no álbum: é mansa, como toda Seresta, o que significa resignação e aceitação dos fatos; a letra é longa e sem refrão ou anáforas, o que acarretaria numa provável impopularidade por conta do grau de dificuldade imposto para a memorização. Particularmente, acho que a voz de Cartola coube perfeitamente na Seresta; se tivesse gravado mais canções como esta, os ouvidos brasileiros poderiam estar muito melhores hoje.


Se o primeiro lado de "Cartola II" começa vacilante e tristissimamente , o segundo dá um tom mais festivo ao início, por causa do andamento e dos arranjos usados em  "Aconteceu", um samba 'de raiz' perfeitamente eficaz pra contar mais um lamento do poeta. Sim, "aconteceu" uma seresta; sim, é uma canção alegre - musicalmente- , mas as palavras ainda são o velho e conhecido lamento do compositor. Num tom quase vingativo, de tão sarcástico, o eu-lírico vai contando de uma mulher que havia esquecido o bem que este lhe havia feito; se arrependendo, por fim, a 'musa' acaba por chorar, motivo de regozijo daquele que lhe beneficiara no passado:

"Aconteceu
Eu não esperava, mas aconteceu
Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu
Revelando a sua imprudência
Construí um lar, o lar que ela pedia
Exigiu-me coisas que ela não queria
É e aconteceu
Hoje ela chora tudo o que perdeu
E chorando veio me pedir perdão
Fica para ela a lição

Aconteceu
Eu não esperava, mas aconteceu
Todo bem que fiz, se fiz, ela esqueceu
Revelando a sua imprudência
Construí um lar, o lar que ela pedia
Exigiu-me coisas que ela não queria
É e aconteceu
Hoje ela chora tudo que perdeu
E chorando veio me pedir perdão
Fica para ela a lição"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

É aquele tipo de sentimento, vingança concretizada, mesmo sem que se faça nada pra que ela aconteça, que chega assim, meio divinamente, de surpresa. Aqui, a musa é uma mulher, mas o sentimento pode ser transferido a quem ou a quê o ouvinte mais ame: o time do coração, o patrão insensível, o amigo falso, o filho ingrato, o governante impopular...

A toada quase seresteira volta em "As Rosas não Falam", clássico do cancioneiro brasileiro e do compositor, reproduzida e regravada em número indefinível por interpretes da mais variada estirpe e procedência, não há amante da Música Brasileira, ou incauto ouvinte, que não reconheça a canção já na primeira frase do instrumental e não pare o que está fazendo pra acompanhar, em silêncio ou não, as palavras de profunda dor e sofrimento de um eu-lírico abandonado pelo ser amado. A genialidade da letra consiste em não identificar o gênero do eu-lírico ou do objeto do discurso: a pessoa amada, ou seja, pode ser cantada por qualquer um para qualquer um (homem, mulher, jovem, idoso). Outro acerto do compositor foi colocar o eu-lírico num cenário e num tempo específicos o "verão" que se aproxima e o "jardim" florido de "rosas". Os acertos na canção somam-se primorosamente, provocando empatia em qualquer um, mesmo naquele que nunca tenha sofrido por amor, a canção contém um dos melhores apelos populares e universais já compostos no Brasil: a toada seresteira acalma e relaxa os sentidos do ouvinte, a letra traz imagética e temporalidade certeiras e significativas, o tom é de resignação, a melodia é comedida e a voz soa tranquila e até esperançosa. É uma canção perfeita pra qualquer coração abatido, abatedor ou em vias de.

"Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão
Enfim

Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim

Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)











"Sei Chorar"  é quase um Samba-enredo sobre a relação dor/amor, com direito a rima previsível e argumentação batida. Seria totalmente dispensável do repertório de Cartola, muito mais deste ou de qualquer outro disco.

"Sei chorar
Eu também já sei sentir a dor
Estou cansado de ouvir dizer
Que aprende-se a sofrer no amor

Hoje eu choro
E a mulher que adoro talvez
Caída em braços de outro sorrindo
Repete as mesmas promessas mentindo

Fui iludido
Sim, pela primeira vez no amor
E quase sempre seu nome repito
Em cada frase um suspiro de dor."

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

"Ensaboa", também com Creusa, vem rancheira soando como o Brasil interiorano; tem inclusive o regionalismo linguístico típico do sertão:

"Rebenta a goela de tanto chorá
O rio tá seco, o sol não vem não
Vortemos pra casa"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

onde até a dupla negativa "não vem não" remete ao modo de falar de quem vive longe do mar ou das capitais.

A canção é sobre o trabalho, única opção do pobre, que é servir: a mulher serve, ensaboando a roupa de seu "dono", o marido; o homem serve (cuidando da mulher que serve) a seu "dono", o patrão, que é rio seco e falta de sol.

Apesar disso, a canção também soa como uma sensualidade implícita no modo de cantar, principalmente no modo de cantar do interprete que representa o eu-lírico masculino, que observa e orienta o eu-lírico feminino num jogo de ordem (masculino) e justificação (feminino).

"Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando

Tô lavando a minha roupa
Lá em casa estão me chamando Dondon

Os fio que é meu, que é meu
E que é dela
Rebenta a goela de tanto chorá
O rio tá seco, o sol não vem não
Vortemos pra casa
Chamando Dondon"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

Mas o sofrimento, pra Cartola, também vem na euforia da paixão; ao evocar a "Senhora Tentação", o eu-lírico confessa sua paixão, mas sofre por isso; sem nenhum motivo que o impeça de consumá-la, sofre somente por sentir e não querer, e pede à "romântica senhora Tentação" que o livre dos efeitos embriagantes desse sentimento. Não há uma explicação do porquê: desilusão antiga, compromisso com outra, proibição moral, ocupação inadiável... O eu-lírico simplesmente sofre por estar apaixonado, e não querer estar.

"Sinto abalada minha calma,
Embriagada minha alma,
Efeitos da tua sedução,
Oh! Minha romântica senhora Tentação,
Não deixes que eu venha a sucumbir,
Neste vendaval de paixão.
Jamais pensei em minha vida,
Sentir tamanha emoção,
Será que o amor por ironia,
Move esta fantasia vestida de obsessão,
A ti confesso que me apaixonei,
Será uma maldição, não sei,
Sinto abalada minha calma,
Embriagada minha alma,
Efeitos da tua sedução,
Oh! Minha romântica senhora Tentação,
Não deixes que eu venha a sucumbir,
Neste vendaval de paixão."

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

E o amor do eu-lírico se realiza na última faixa do disco. "Cordas de Aço" é uma curta elegia ao companheiro do sambista, o violão. Nela, é cantado que  o instrumento é o único capaz de entender os porquês do poeta, o violão; aliás, nas letras das canções deste disco, o violão é também o único a ser tocado, literalmente, pelo eu-lírico; o amor entre o sambista e o violão é o único concreto, físico, tangível e real. Mas aqui, mesmo assim, há ainda o lamento, muito perceptível em todas as partes da canção (andamento, arranjo, interpretação vocal, letra...), com utilização, inclusive, da interjeição "Ah!" preposta ao vocativo, bastante comum aos "ais" lamentosos das cantigas de amigo medievais. Talvez possa ser a razão deste lamento final justamente o fato de um violão, objeto inanimado, ser o único amor possível pra este sambista.

"Ah, essas cordas de aço
Este minúsculo braço
Do violão que os dedos meus acariciam
Ah, este bojo perfeito
Que trago junto ao meu peito
Só você violão
Compreende porque perdi toda alegria
E no entanto meu pinho
Pode crer, eu adivinho
Aquela mulher
Até hoje está nos esperando
Solte o teu som da madeira
Eu você e a companheira
Na madrugada iremos pra casa
Cantando..."

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)




A GLÓRIA NO FIM

Cartola, bem nascido culturalmente, entrou cedo na tragédia da vida, e perambulou: de casa em casa, de bairro em bairro, de mulher em mulher, até se encontrar no Morro da Mangueira, nos seios de Dona Zica e no braço do violão. Fez o que podia e o que era preciso pra continuar vivo e íntegro. Compôs e cantou sempre, mesmo no esquecimento. E, num lance de dados, foi redescoberto quando o país carecia de raiz autêntica e sincera. Gravou seu primeiro disco, como interprete das próprias canções, em 1974, aos 66 anos,  e foi sucesso até o fim de sua vida, 6 anos depois.

Este disco, como os demais, é uma coletânea de desilusão e sofrimento, que talvez reflita a própria vida do poeta sambista. E o que teria pra contar e deixar como legado um mulato morador do morro que, apesar de talentoso, só foi reconhecido na velhice? Nada que não fosse "O Mundo é um Moinho", " Preciso Me Encontrar" e "Cordas de Aço": testamento perene pro jovem sonhador que pretende mudar qualquer coisa pra melhor, desde sua condição até a condição do próximo. A mensagem de Cartola é totalmente fatalista: não adianta querer, não adianta lutar, a glória só virá quando for tempo. Pra Cartola, a glória veio no fim, que talvez seja a única honesta e justa.

"  Na madrugada iremos pra casa / Cantando..."