domingo, 27 de novembro de 2016

ALUCINAÇÃO

Alucinação



E A COMÉDIA É TAMBÉM DIVINA

Em 1976, os brasileiros discordantes de 1968 viram amenizadas as perseguições que lhes impuseram os concordantes. Em 1976, o planeta se dividia entre nós e eles na guerra fria. Em 1976, percebia-se claramente que a democracia e a liberdade social não passavam de falácias. Em 1976, um cearense de Sobral não se interessava por "nenhuma teoria": "amar e mudar as coisas" era o que lhe interessava mais.

Porém, pra Belchior, estudante de Filosofia, não bastava outro regime político ou econômico, não bastava a realidade ou a falta dela, não bastava a destruição ou a conservação de tudo. Só lhe interessava a mudança interna do homem, que, amando, mudaria a si e ao próximo.

Desde menino, Belchior respirava arte: seu pai era saxofonista e a mãe, cantora de coro de igreja; também tinha tios poetas e boêmios; assim se tornou cantador de feira e poeta repentista na infância, até mudar-se pra Fortaleza, a fim de estudar Filosofia. Mas nunca abandonou a música: mesmo estudante, se apresentava em alguns festivais de música pelo nordeste que, por causa do sucesso, lhe incentivaram a deixar os estudos e se dedicar à carreira artística, o que o acabou levando ao Rio de Janeiro, como tantos outros de tantas outras regiões do Brasil, para que levasse a frente sua intenção de viver da música que fazia. E conseguiu: "Na Hora Do Almoço" venceu o Festival Universitário da MPB de 1971, também gravada com sua interpretação em um compacto do selo Copacabana.

No ano seguinte, Elis Regina gravou "Mucuripe", composição dele com Fagner, facilitando seu acesso a uma maior parte da mídia e dos ouvintes. Lançou um LP em 1974, "Mote e Glosa", com muitas experimentações poéticas e sonoras, mas que não caiu no gosto popular (ainda hoje é pouco conhecido). O sucesso só veio mesmo em 1976 com "Alucinação", em que abandonou a experimentação de formas e se esmerou na profundidade temática das letras das canções, com levadas bem mais populares, bem mais próximas do Folk e do Rock que do Brasil ou do Nordeste.

Mesmo com roupagem Pop o disco continha pretensões ousadas, o que faria dele uma das partes mais bem sucedidas do meio cult de seu e de todos os tempos, mesmo sem falar em política, tema esse, aliás, que envelhece junto com as ideologias. Mais que isso, Belchior pretendia ser 'eterno' ao falar da eterna tragédia de ser humano e social.

A miséria e a angústia de viver, além de servirem para temas de suas canções, também o levaram a 'desaparecer' do mercado fonográfico, dos palcos e do convívio com amigos e familiares em 2009. Até hoje recluso, e procurado por dívidas várias, não se sabe bem o porquê de seu sumiço e de sua recusa em voltar à 'realidade'. Essa tragédia só nos faz sentindo se levarmos em conta a nova paixão, que o arrancou de esposa antiga e filhos, e o antigo projeto (traduzir "A Divina Comédia" do original para uma linguagem mais popular do Português) que o impossibilita de se apresentar para novos fãs e voltar ao convívio social normal.

Nessa história, o que mais espanta é o isolamento total: Belchior não fala, não vê e não visita amigos nem parentes, ou pelo menos estes se negam a dizer que ele os faz; talvez por causa de algumas dívidas que o abandono da vida social lhe teriam imposto sem que este pudesse arcar com elas: desde 2009 ele não se apresenta em público (shows e apresentações são a maior fonte de renda para músicos).

O fato é que Belchior, ao menos para este simples cronista, parece querer ir ainda mais além da política, da economia e das relações: preferiu ser ainda mais humano e cantar "A Divina Comédia" no lugar de se ver preso a pequenos e imóveis círculos de poder. Enquanto alguns de seus contemporâneos usavam a música e a arte pra lutar por melhorias sociais ou simplesmente pra ter um quinhão a mais do muito que lhes é negado, ele quis mostrar que basta ser humano e social pra ser miserável; e, agora, enquanto seus contemporâneos se aposentam, morrem ou fazem parte do mainstream, ele se lança em sua jornada final, coerente com sua trajetória, que será seu legado. Em vez de descansar em Paris ou viver de migalhas dos meios de comunicação continua sua busca e descoberta, que são as únicas coisas que realmente fazem o homem humano.


ALUCINAÇÃO

O título é "Alucinação", do disco e de uma das faixas, mas não é disso que trata a obra, exatamente o oposto.

Nos tempos em que se anunciava: "o sonho acabou", se via aqueles que optavam pelo desbunde vazio (festas intermináveis com luxo e poder) e aqueles que não conseguiam sair da rebordosa e se negavam a acreditar que o "dedo em V" tinha dado em nada nas ruas, nas moradas e nos bailes.

Contudo, Belchior, alheio a modismos, atento a movimentos que via e analisava à margem dos marginais, percebia não ser nem uma nem outra a opção ideal a ser seguida. Das alucinações dos anos sessenta, lhe interessava só a realidade posta e ainda mais dura e fria que lhe sobrava no meio da década de 1970. E belchior estava mesmo no meio, entrando na grande mídia, dominada por grandes artistas intelectuais que iniciaram sua carreira dez anos antes e por novos artistas muito popularescos e bastante populares, se via a meio termo entre o brega e filosófico, amando, nas canções, amores reais e pensando, nas entrelinhas, pensamentos concretos: os tempos de alucinação não deram em nada e não interessavam mais; mundo ideal, amor ideal eram demasiado vagos e inúteis em 1976. Era tempo de viver a realidade e amar o possível.

O disco traz na primeira faixa a canção que ficaria como marca registrada desse cantor de voz grave e seca: "Apenas um rapaz latino-americano". Canção inteligentíssima e ácida, mostra um pequeno resumo da vida deste brasileiro que tenta se propôr àqueles que ainda sonhavam um novo mundo e àqueles que já não esperavam nada dele: ambos de olhos bem fechados. Esse afã por se explicar e se colocar como indivíduo com marcas e com história, aliás, é recorrente no cancioneiro de Belchior, um compositor que levava o "conhece a ti mesmo" a sério e fazia questão de mostrar isso como uma forma de se colocar no meio: algumas canções deste disco, e outras nos trabalhos seguintes, retomavam esse tema, com a mesma genialidade.

Em "Apenas um rapaz latino-americano", contundentemente, o eu-lírico se põe como um simples cantor periférico (da periferia da periferia), sem muito poder, ou qualidade, pra quem sonha com salvadores estrangeiros. Mesmo assim, segundo a canção, este teria um ponto de vista seu e uma ideia sua: " Eu sou apenas um rapaz / Latino-Americano / Sem dinheiro no banco / Sem parentes importantes / E vindo do interior / Mas sei que nada é divino / Nada, nada é maravilhoso / Nada, nada é secreto / Nada, nada é misterioso, não".

A canção diz que o brasileiro eu-lírico, infelizmente, é só um cantor vindo do interior, trazendo canções e palavras como "navalhas", afirmação retomada depois, noutras canções, ainda no mesmo LP.


"Velha roupa colorida" , assim como "Apenas um rapaz latino-americano", ficou, antes e mais, famosa na voz de Elis Regina, interprete especializada em "achar" grandes novos talentos da MPB. A canção tenta mostrar o quanto os sonhos de mudança para um mundo mais igual e mais fraterno estavam já ultrapassados e, agora, inúteis: "... eu não posso deixar de dizer, meu amigo / Que uma nova mudança em breve vai acontecer / E o que há algum tempo era jovem novo / Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer". E com a navalha ainda mais afiada e cortando ainda mais profundo, Belchior cita Allan Poe pra explicar que a chance de vitória da Geração Paz e Amor havia passado, sem conclusão e sem possibilidade de retomada; "Assum-preto, pássaro preto, black bird, me responde, tudo já ficou atrás / Haven never haven never haven never haven never haven / Black bird, pássaro preto, pássaro preto, me responde / O passado nunca mais". A oportunidade de mundo novo passara, e nunca mais; agora a realidade é que era concreta.


Outra, também, mais de Elis do que de qualquer outro, "Como nossos pais", é genial e retoma o passado como tema em contraposição ao presente, e de como o eu-lirico se coloca entre ambos; mostra de novo a juventude como 'perdedora' que sonhou, que tentou, que fez, mas que não conseguiu muito mais do que aquilo que seus próprios pais conseguiram: viver do passado de promessas no presente de decepções, e negando a nova juventude que chega com seus novos sonhos e novos planos de mundo melhor; é o "sinal fechado" pra aqueles que trazem o novo.


"Sujeito de sorte" se achava o eu-lírico por, mais uma vez, no presente, ser "muito moço" e, apesar disso, muito vivo, pois não vai "sofrer no passado". Parece ainda o mesmo tema opondo passado e presente, antigo e novo, morte e juventude: o jovem do ano passado está morto, mas o jovem do presente, "sujeito de sorte", não morre, sobretudo se insistir em estar no presente.


E a juventude continua a lutar em "Como o diabo gosta"; ao pregar a desobediência ao estabelecido, o eu-lírico põe na mesa a face nua da juventude - se opôr ao que lhe impede de ser:

" Não quero regra nem nada
Tudo tá como o diabo gosta, tá,
Já tenho este peso, que me fere as costas,
e não vou, eu mesmo, atar minha mão.
O que transforma o velho no novo
bendito fruto do povo será.
E a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter;
é nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobedecer.
Nunca reverenciar."
(BELCHIOR - Alucinação - PolyGram; Rio de Janeiro, 1976)


Falando mais claramente, em "Alucinação" a quebra com o passado, do "dedo em V" e do "cabelo ao vento", é reafirmada com mais palavras, com mais imagens e com mais realidade: "Eu não estou interessado / Em nenhuma teoria / Nem nessas coisas do Oriente / Romances astrais / A minha alucinação / É suportar o dia-a-dia / E meu delírio / É a experiência / Com coisas reais".

Pra completar sua argumentação, o eu-lírico, na segunda parte da canção, descreve a realidade urbana do Brasil em 1976, que era a mesma desde os 1960, e que não havia mudado com os sonhos, com as fantasias e com as teorias da juventude daquele tempo. O que interessava era amar e mudar essa realidade, léguas distante de qualquer sonho:

"Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas"
(BELCHIOR - Alucinação - PolyGram; Rio de Janeiro, 1976)

Mas parece que Belchior quis mostrar o outro lado desta moeda das sobreposições, tendo estado, inclusive, no lado oposto. O eu-lírico de "Não Leve Flores" já inicia com uma ordem que mais soa como um contra-ataque: "Não cante vitória muito cedo, não. / Nem leve flores para a cova do inimigo, / que as lágrimas do jovem / são fortes como um segredo: / podem fazer renascer um mal antigo". 

Como um aviso de vingança, destaca que os jovens, derrotados, ainda podem "renascer". Desse modo, há sugestão de um conhecimento e uma participação do "jovem" de 1976 nas mudanças que os de 1966 sonharam e não conquistaram, por força do antigo e, como era argumentado até agora, da nova juventude, diferente e mais forte que a anterior. 

Assim, o eu-lírico, que cantava e celebrava o novo que avançava sobre o antigo, derrotado, conheceria também o lado perdedor, como se tivesse feito parte dele, e esperasse algum movimento que o mostrasse tão vivo e ativo quanto antes.

"Tudo poderia ter mudado, sim,pelo trabalho que fizemos - tu e eu.
Mas o dinheiro é cruel
e um vento forte levou os amigos
para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos,
e nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não.
(...)
Tenho falado à minha garota:
- Meu bem, é difícil saber o que acontecerá.
Mas eu agradeço ao tempo.
O inimigo eu já conheço.
Sei seu nome, sei seu rosto, residência e endereço.
A voz resiste. A fala insiste: você me ouvirá.
A voz resiste. A fala insiste: quem viver verá."
(BELCHIOR - Alucinação - PolyGram; Rio de Janeiro, 1976)

Tem-se a impressão de que o jovem cantado pelo eu-lírico, no disco como um todo, fez parte também da juventude que sonhou e que foi vencida pelo velho inimigo: o tempo; e, embora  assumindo os ideais da nova juventude, da qual também participa, parece que ainda espera que o sonho derrotado ressurja e refaça, com acerto, o que não pôde em seu tempo. Algo como: entendo e luto por meu tempo, mas as certezas do passado eram mais.


Paradoxalmente ao dito na canção anterior, "A palo seco"  retoma o discurso de quem veio pra sobrepor e substituir aqueles que sonharam e não realizaram. 

Canção clássica, e genial, retoma inclusive a ideia de palavras serem feitas armas e não conforto ou idealizações: "eu quero é que esse canto torto / Feito faca, corte a carne de vocês".

Inicia como um grito de revolta e de luta, como em "Não leve flores", mas agora cantada por quem, no lugar de divagar mundos possíveis, abria os olhos e via o desespero de quem vivia a realidade: "Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava / De olhos abertos, lhe direi: / Amigo, eu me desesperava".

Mais adiante, retoma o fato, consequente, de ser brasileiro e ter que lutar em seu tempo, o mesmo já cantado em "Apenas um rapaz latino-americano": "Tenho vinte e cinco anos / De sonho e de sangue / E de América do Sul / Por força deste destino / Um tango argentino / Me vai bem melhor que um blues".

Argumentação intercalada pela conclusão mais conhecida da canção e do compositor: 

"Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês"
(BELCHIOR - Alucinação - PolyGram; Rio de Janeiro, 1976)

Em que se coloca, mais uma vez, em seu tempo, aquele a que deve obedecer.


Ainda retomando o poder da argumentação autobiográfica de "Apenas um rapaz latino-americano", presente também, em menor parte, em "A palo seco" e "Como nossos pais", a penúltima canção do disco, "Fotografia 3x4", vai contando a saga do migrante nordestino que vem tentar a vida no Sul, sentindo as estranhezas que lhe sucedem: estranho para o lugar, estranho para a gente; estranho o lugar, estranha a gente. 

Na canção, o eu-lírico se coloca também como estranho e divergente do eu-lírico presente na canção de outro compositor, também migrante, mas com uma história diferente: Caetano Veloso, diferentemente de Belchior, teria chegado ao Rio já bem indicado e bem instalado; ao contrário, Belchior teria vindo por conta própria e tendo que convencer colegas, amigos e artistas desde o zero, sem indicações, diplomas ou prêmios:

"Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua"

(Belchior - Alucinação - PolyGram; Rio de Janeiro, 1976)

Parte deste verso é citação de outro de "Alegria, Alegria", canção de Caetano que, como a de Belchior, fala de alguém que se depara com as novidades encontradas na grande cidade, porém, com uma atitude bem diferente, a de quem gosta, aceita e quer:

"Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou."
(VELOSO, Caetano - Caetano Veloso - Philips Records; Rio de Janeiro, 1968)

Este é um recurso semântico, aliás, bastante usado por Belchior: reforçar seus argumentos, ou contra-argumentos, com citações literais de seus autores preferidos ou de autores contemporâneos seus. O que, particularmente, me agrada muito (costumo avaliar meu interlocutor a partir de quem este cita ou lembra).

Enquanto o eu-lírico da canção vai se colocando como alguém que é muito próximo do povo simples e batalhador (que vive a realidade), em oposição àqueles que vencem por já estarem entre os vencedores, faz questão de, pra reafirmar a coerência discursiva do álbum, ter de si a ideia de novidade a ser posta, ou proposta: "A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia / E pela dor eu descobri o poder da alegria / E a certeza de que tenho coisas novas / Coisas novas pra dizer".

Mas como a autobiografia aqui é o tema argumentativo mais relevante, aquele que será usado pra validar a conclusão do discurso do eu-lírico, este trecho não é colocado na força do final da canção, apenas um pouco antes do final. No fim da letra, o eu-lírico repete muitas vezes a afirmação de que é como aquele que o ouve: que sofre, que luta e que segue em frente sem poder contar com muita ajuda:

"A minha história é talvez
É talvez igual a tua, jovem que desceu do Norte
Que no Sul viveu na rua
Que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo
Que ficou desapontado, como é comum no seu tempo
Que ficou apaixonado e violento como você
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você que me ouve agora
Eu sou como você
Como você"
(BELCHIOR - Alucinação - PolyGram; Rio de Janeiro, 1976)

Seria já um Gran Finale para o disco (levando em conta esta minha humilde ideia de bom disco): argumentou bem, mostrou as contra-argumentações (colocou-se até do outro lado, expondo sua empatia humana) e fechou muito bem, retomando argumentos e formas já postas, porém com novas informações, incluindo o verdadeiro propósito do discurso: a tese de o eu-lírico ser como aquele que o ouve; argumentação clássica.

Mas não. Sendo Belchior, não ficaria só assim. Grande intelectual, teria ainda um epílogo pra esclarecer-se.

"Antes do fim" , a última, se despede diretamente do ouvinte lhe desejando aquilo que entendia como bem eterno, e moderno: "que fiquem sempre jovens / e tenham as mãos limpas / e aprendam o delírio com coisas reais".

Na segunda parte ainda pede pra não ser temido por quem o ouve, já que "Viver é que é o grande perigo".
Uma singela despedida cheia de profunda sabedoria, para um simples disco repleto de complexa verdade: "o novo sempre vem".


REFERÊNCIA


BELCHIOR



ESTADÃO 

ÉPOCA 





ÁLBUM