sábado, 28 de janeiro de 2017

CARTOLA II

Quando o poema ia lento...

CARTOLA



Angenor de Oliveira nasceu em 11 de outubro de 1908 do casamento de Sebastião Joaquim de Oliveira com Aída Gomes de Oliveira no Rio de Janeiro.

Era o mais velho de oito irmãos e, sendo filho de artista (seu pai tocava violão e cavaquinho), logo cedo tomou gosto pela música, sobretudo pelo samba. O avô materno havia sido escravo em Macaé, mas, depois da assinatura Lei Áurea, foi contratado por uma família residente no Bairro do Catete na cidade do Rio, onde, mais tarde, nasceu Angenor.

Quando da morte de seu avô materno, a família passou a ter problemas pra se sustentar, então mudaram-se para o bairro das Laranjeiras, onde passou a se apresentar tocando cavaquinho com o pai. Mais tarde, porém, ainda por motivos financeiros, a família foi para o Morro da Mangueira, um pequeno povoado com menos de cinquenta barracos nesse tempo. Foi ali que conheceu e seu tornou amigo de Carlos Cachaça, com quem fez, em parceria, grande parte de seus sambas.

Ao contar dezessete anos, sua mãe faleceu, tragédia esta que marcaria ainda mais sua vida, já que as mudanças todas, nela, foram marcadas por fatalidades. Com a morte da mãe, sua relação com o pai desandou, este o acusava de não querer seriedade com a vida e de preferir a vadiagem ao trabalho. O clima se intensificou a ponto de se agredirem fisicamente, culminando na saída de Cartola da casa do pai.

Cartola passou então a viver de bicos e perambulando pelas ruas. Nesse período é que ganhou o apelido de Cartola, por causa de um chapéu coco que usava pra evitar que a sujeira da construção caísse em sua cabeça enquanto trabalhava como ajudante de pedreiro; dizia que tinha o melhor trabalho do mundo, pois, além de conseguir um bom dinheiro, também podia gastá-lo com mulheres (por causa de seu gosto por elas, e suas frequentes visitas à zonas de meretrício, adquiriu diversas doenças venéreas, o que lhe causou ainda mais debilitação); foi quando uma vizinha, Deolinda, passou a cuidar dele. Mesmo casada, acabou se envolvendo com o futuro sambista, deixando a casa do marido, com a filha, para viver com Angenor. Cartola, como os demais moradores do barraco (o casal o dividia com amigos), não trabalhava, eram todos sustentados com o trabalho doméstico de Deolinda , e vivia se metendo em brigas e confusões com outros boêmios em suas noitadas pelas ruas da cidade. Este grupo de amigos, e arruaceiros, mais tarde, formaria o núcleo originário do Bloco Da Mangueira, depois Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira; o nome foi dado porque, a partir da Central do Brasil, a Mangueira era a primeira parada do Trem Metropolitano.

Sua vida de boêmio e compositor só passou a gerar lucros em 1930, quando foi procurado por Mário Reis que pretendia comprar um de seus sambas. Cartola vendeu a Mário Reis "Que Infeliz Sorte"; a gravação fez com que, pela primeira vez, fosse ouvido e reconhecido fora do Morro da Mangueira.

Até 1940, sua vida e sua carreira eram de sucesso, na Mangueira e fora dela, mas, a partir deste ano, com a nova direção da Escola de Samba e o claro descaso da Gravadora com seu trabalho, Cartola viu seus sambas serem rejeitados pela Mangueira (sua escola do coração) e pelos interpretes dos estúdios. Até 1947 se viu impossibilitado de compor e se apresentar por causa de uma meningite, que o deixou alguns dias em estado de coma e mais um ano dependendo de muletas para se locomover. Se mudou para Nilópolis por ter vergonha de seu estado físico e profissional, onde era cuidado, mais uma vez, por Deolinda. Mas, pouco depois, ela também viria a falecer.

As coisas só fizeram piorar até por volta de 1950, quando Dona Zica o encontrou muito maltratado: entregue à bebida, desdentado, fraco e com a face desfigurada por causa de uma infecção no nariz. Dona Zica o levou para sua casa, na Mangueira, ela já o conhecia dos tempos de fama e sucesso, e seria sua nova e definitiva esposa.

Até 1957, ajudou a esposa trabalhando em empregos temporários e mal remunerados, entre eles, vigia e lavador de carros de um edifício em Ipanema, onde o cronista e jornalista Sérgio Porto o encontrou e o reconheceu, passando a partir de então a lhe dar uma ajuda, através de seus contatos, pra que sua carreira reiniciasse.

Depois de um trabalho como contínuo num jornal e algumas apresentações, conseguidos com a ajuda do fã e amigo jornalista, Cartola e Dona Zica abrem juntos um restaurante, O Zicartola, onde ela cozinhava e ele recebia amigos e intelectuais em uma roda de samba. A fórmula foi um sucesso, mas durou pouco: por falta de tino administrativo, não conseguiram fazer com que o restaurante lucrasse o quanto podia. Em dois anos o restaurante fechava suas portas.

Na década de 1970, veio a consagração definitiva, Cartola, amado por estudantes e intelectuais do Rio, era chamado a se apresentar em praticamente todos os eventos e debates promovidos pela juventude engajada da cidade. Assinou contrato com a Gravadora Marcus Pereira e iniciou o registro de "Cartola", seu primeiro álbum de estúdio, até então era conhecido por gravações piratas ao vivo e por interpretações de cantores famosos. O disco fez tanto sucesso, que dois anos depois nasceu "Cartola II" como uma continuação do primeiro e com maior sucesso de vendas e crítica. Este, de 1976, também se chamava "Cartola", mas se convencionou chamá-lo de "Cartola II" para que se pudesse diferenciar as duas joias da produção fonográfica brasileira.


Sua carreira e vida pessoal, finalmente, se estabilizaria até 1980, ano em que faleceu.


Pode-se dizer que Cartola sofreu a fatalidade comum ao mulato pobre brasileiro até a velhice (falta de oportunidade justa e falta de consolo social; só não sofreu de falta de amor, isto, aliás, sempre teve de sobra, sendo, inclusive, aquilo que muitas vezes lhe colocou de volta no trilho da vida ganha com arte); aos 60 anos, passou a gozar de fama e sucesso com o que tinha vivido, guardado e reconstruído em suas canções.




O LAMENTO NO MORRO


O LP foi gravado depois do sucesso alcançado com o primeiro da retomada, que se chamava simplesmente  "Cartola"; talvez, com esperança de atingir o mesmo sucesso, ou superá-lo, também foi nomeado "Cartola"; este, agora com o compositor e sua amada, Dona Zica (o primeiro trazia somente o Cartola sorridente), estampados na capa ficou conhecido como "Cartola II", como forma de distinção entre ambos. Porém, ao contrário do álbum de 1974, este trazia produção mais requintada, e versos mais tristes embalados em andamentos mais arrastados. Ambos os discos abordam a tristeza da desilusão amorosa, mas o primeiro soa mais esperançoso que o segundo.

"Cartola II" parece até uma coletânea de sucessos, pois o ouvinte, inconsciente da discografia, pode acompanhar a reprodução da obra cantarolando, do princípio ao fim, todas as faixas; a começar por "O Mundo É Um Moinho". Lamentosamente, o choro da flauta nos introduz no disco acompanhado da voz indecisa do violão e, depois, da do Cartola cantando: "Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora de partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar". Esse lamento indeciso continua até o fim dos versos e estrofes. Quando digo lamento, além do tom e andamento da canção, é porque se percebe isso claramente nas palavras da canção, onde o eu-lírico tenta avisar a uma jovem, que vai entrando na vida com euforia, o quanto esta vida vai maltratá-la e torná-la mais uma pessoa desiludida. Quando digo indeciso, é porque, assim como os instrumentos citados, a voz do interprete entra na canção fraca e quase vacilante, parecendo mesmo alguém expressando indecisão, mas não por não saber do que fala, e sim por não estar certo se deve mesmo falar o que sabe, e, talvez até, por ter esperança de que seja diferente com esta que agora se aventura pela vida.

Porém, na segunda parte da canção, quando é repetido todo o texto, tudo toma corpo: o violão, a flauta, a voz... e a percussão se mostra, trazendo mais força enfática ao que se quer dizer com as palavras, que se resume a algo como 'você não é diferente de mim, vai sonhar e amar como eu amei, vai cair e sofrer como eu sofri':

"Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

E põe um ponto final no que pretende explicar.


"Minha", a seguir, vem mais animada no andamento e na riqueza de instrumentação desde o início, mas com aquela tristeza vingativa na voz e no texto, ao reclamar que a musa nunca teria sido sua. Interessante é o uso da dialética na canção, que tem, como título, o pronome possessivo "Minha" e, como anáfora, "Minha? Quem disse que ela foi minha?", negando assim a proposição posta de que um certo alguém teria pertencido ao eu-lírico, hipótese refutada com argumentação lógica e voz embargada como quem lamenta não ter tido e como quem gostaria de se vingar de quem o tivesse iludido, e que agora se ilude por não saber da verdade:

"Minha
Quem disse que ela foi minha
Se fosse seria a rainha
Que sempre vinha
Aos sonhos meus

Minha
Ela não foi um só instante
Como mentiam as cartomantes
Como eram falsas as bolas de cristal"

Minha
Repete agora esta cigana
Lembrando fatos envelhecidos
Que já não ferem mais os meus ouvidos"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

Com um pouco mais de alegria, "Sala de Recepção", com Creusa, passa da musa mulher para a musa morada: aproveitando a fama e o sucesso da escola de samba do Morro da Mangueira e o descaso do povo do asfalto com alegria da gente que ali vive, o eu-lírico descreve a felicidade do povo simples do morro, que é feliz justamente por ser simples; perguntado como poderia, sendo tão pobre, ainda assim cantar o Morro da Mangueira, dá, como resposta, que é porque não deseja nada além disso: cantar e ser ouvido.

"Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
Como podes, mangueira, cantar?

Pois então saiba que não desejamos mais nada
A noite, a lua prateada
Silenciosa, ouve as nossas canções

Tem lá no alto um cruzeiro
Onde fazemos nossas orações
E temos orgulho de ser os primeiros campeões

Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora
E as outras escolas até choram
Invejando a tua posição

Minha mangueira essa sala de recepção
Aqui se abraça inimigo
Como se fosse irmão"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

E, por isso, a paz e a felicidade é que reinam na "sala e recepção" do morador da Mangueira.

Na canção seguinte, "Não posso viver sem ela", ainda mais ligeira que a anterior, o lamento se torna ação efetiva para o eu-lírico, que usa suas mágoas a fim de tentar convencer a mulher amada a voltar pro lar, abandonado por ela.

Perceba que o lamento é sempre a 'arma' usada pelo eu-lírico nos enfrentamentos até aqui; mesmo ao falar da felicidade do povo da Mangueira, esta viria do fato de poder lamentar (cantar):

"Tive que contar a minha vida
A esta mulher fingida
Que me faz sofrer
Esta dor que tanto me crucía
Roubou toda a alegria
Do meu viver

Pode ser que ela ouvindo os meus ais
Volte ao lar pra viver em paz

Esta malvada bem sabe o mal que me fez
Mas não faz mal eu lhe perdoo outra vez
Meu coração vive reclamando noite e dia
Por isso eu peço que ela volte para a minha companhia"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

Mas o canto volta a se arrastar! Aquele que pensava que a alegria, mesmo lamentosa, tomaria conta do resto do disco, num crescendo de firme propósito, se enganou. Antes de terminar o Lado A, ouvimos novamente vozes vacilantes de um violão e de um fagote introduzindo o ouvinte na tristeza do eu-lírico. Genialmente, é colocado o fagote como instrumento melódico nessa introdução, fraseando a linha que seria cantada na segunda parte pelo interprete. O som grave do fagote, o mais grave dos instrumentos de sopro de madeira, aliado ao dedilhado reticente do violão, dão tamanha ênfase ao tom melancólico que viria a seguir, que se torna impossível não parar o que se faz pra dar atenção à tragédia a ser contada.

Contudo, a tragédia aqui contada não seria totalmente passiva: mais uma vez, o lamento se torna, na canção, instrumento de ação contra o opressor. Acabando a primeira parte, em que o fagote é só lamento para o violão, a voz do interprete entra, agora acompanhado também da energia da percussão, dizendo enfaticamente que precisa se afastar do que faz o eu-lírico sofrer:

"Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

A ação vem do lamento também, mas não é usada propriamente como arma nesta canção, mas como motivo pra fazer diferente: "Sorrir pra não chorar"; pois, provavelmente, desta vez, o sofrimento fosse tanto, que não haveria choro que bastasse.

Tenho esta canção como o clássico dos clássicos de Cartola, ainda mais do que "As rosas não falam", ou qualquer outra. Principalmente, por trazer à tona a verve de rebeldia integrante da personalidade do autor; sempre que se sentia vilipendiado por algum motivo, em sua mocidade sobretudo, o poeta se abandonava em revide verbal ou físico, o que acabou lhe dando fama de arruaceiro e lhe rendendo algumas prisões  por desordem da ordem pública.

Na segunda estrofe, são apenas duas, repetidas muitas vezes, o eu-lírico demonstra sua mais verdadeira angústia: a falta de vida. Coisas tão simples, tão básicas, tão necessárias e, ao mesmo tempo, tão distantes de quem, na pobreza, se vê confinado nas intrigas e nas obrigações das pessoas e das cidades. Sair, se afastar, procurar motivo pra sorrir seria um outro modo de se rebelar contra a opressão, as outras seriam destruí-la ou modificá-la, mas o que poderia um poeta pobre do morro fazer além de fugir?

"Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar

Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)


"Peito Vazio". No fim do Lado A, uma Seresta mansa, doce, chorosa...  sobre a saudade desce nos corações pra alentar as mágoas todas de todos. A partir do nada a dizer, o compositor pôde construir uma pérola sobre a angústia de não conseguir se expressar ou expressar o que não sente aquele tomado pela saudade. Esta Seresta é um adendo destoante no álbum: é mansa, como toda Seresta, o que significa resignação e aceitação dos fatos; a letra é longa e sem refrão ou anáforas, o que acarretaria numa provável impopularidade por conta do grau de dificuldade imposto para a memorização. Particularmente, acho que a voz de Cartola coube perfeitamente na Seresta; se tivesse gravado mais canções como esta, os ouvidos brasileiros poderiam estar muito melhores hoje.


Se o primeiro lado de "Cartola II" começa vacilante e tristissimamente , o segundo dá um tom mais festivo ao início, por causa do andamento e dos arranjos usados em  "Aconteceu", um samba 'de raiz' perfeitamente eficaz pra contar mais um lamento do poeta. Sim, "aconteceu" uma seresta; sim, é uma canção alegre - musicalmente- , mas as palavras ainda são o velho e conhecido lamento do compositor. Num tom quase vingativo, de tão sarcástico, o eu-lírico vai contando de uma mulher que havia esquecido o bem que este lhe havia feito; se arrependendo, por fim, a 'musa' acaba por chorar, motivo de regozijo daquele que lhe beneficiara no passado:

"Aconteceu
Eu não esperava, mas aconteceu
Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu
Revelando a sua imprudência
Construí um lar, o lar que ela pedia
Exigiu-me coisas que ela não queria
É e aconteceu
Hoje ela chora tudo o que perdeu
E chorando veio me pedir perdão
Fica para ela a lição

Aconteceu
Eu não esperava, mas aconteceu
Todo bem que fiz, se fiz, ela esqueceu
Revelando a sua imprudência
Construí um lar, o lar que ela pedia
Exigiu-me coisas que ela não queria
É e aconteceu
Hoje ela chora tudo que perdeu
E chorando veio me pedir perdão
Fica para ela a lição"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

É aquele tipo de sentimento, vingança concretizada, mesmo sem que se faça nada pra que ela aconteça, que chega assim, meio divinamente, de surpresa. Aqui, a musa é uma mulher, mas o sentimento pode ser transferido a quem ou a quê o ouvinte mais ame: o time do coração, o patrão insensível, o amigo falso, o filho ingrato, o governante impopular...

A toada quase seresteira volta em "As Rosas não Falam", clássico do cancioneiro brasileiro e do compositor, reproduzida e regravada em número indefinível por interpretes da mais variada estirpe e procedência, não há amante da Música Brasileira, ou incauto ouvinte, que não reconheça a canção já na primeira frase do instrumental e não pare o que está fazendo pra acompanhar, em silêncio ou não, as palavras de profunda dor e sofrimento de um eu-lírico abandonado pelo ser amado. A genialidade da letra consiste em não identificar o gênero do eu-lírico ou do objeto do discurso: a pessoa amada, ou seja, pode ser cantada por qualquer um para qualquer um (homem, mulher, jovem, idoso). Outro acerto do compositor foi colocar o eu-lírico num cenário e num tempo específicos o "verão" que se aproxima e o "jardim" florido de "rosas". Os acertos na canção somam-se primorosamente, provocando empatia em qualquer um, mesmo naquele que nunca tenha sofrido por amor, a canção contém um dos melhores apelos populares e universais já compostos no Brasil: a toada seresteira acalma e relaxa os sentidos do ouvinte, a letra traz imagética e temporalidade certeiras e significativas, o tom é de resignação, a melodia é comedida e a voz soa tranquila e até esperançosa. É uma canção perfeita pra qualquer coração abatido, abatedor ou em vias de.

"Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão
Enfim

Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim

Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)











"Sei Chorar"  é quase um Samba-enredo sobre a relação dor/amor, com direito a rima previsível e argumentação batida. Seria totalmente dispensável do repertório de Cartola, muito mais deste ou de qualquer outro disco.

"Sei chorar
Eu também já sei sentir a dor
Estou cansado de ouvir dizer
Que aprende-se a sofrer no amor

Hoje eu choro
E a mulher que adoro talvez
Caída em braços de outro sorrindo
Repete as mesmas promessas mentindo

Fui iludido
Sim, pela primeira vez no amor
E quase sempre seu nome repito
Em cada frase um suspiro de dor."

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

"Ensaboa", também com Creusa, vem rancheira soando como o Brasil interiorano; tem inclusive o regionalismo linguístico típico do sertão:

"Rebenta a goela de tanto chorá
O rio tá seco, o sol não vem não
Vortemos pra casa"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

onde até a dupla negativa "não vem não" remete ao modo de falar de quem vive longe do mar ou das capitais.

A canção é sobre o trabalho, única opção do pobre, que é servir: a mulher serve, ensaboando a roupa de seu "dono", o marido; o homem serve (cuidando da mulher que serve) a seu "dono", o patrão, que é rio seco e falta de sol.

Apesar disso, a canção também soa como uma sensualidade implícita no modo de cantar, principalmente no modo de cantar do interprete que representa o eu-lírico masculino, que observa e orienta o eu-lírico feminino num jogo de ordem (masculino) e justificação (feminino).

"Ensaboa mulata, ensaboa
Ensaboa
Tô ensaboando

Tô lavando a minha roupa
Lá em casa estão me chamando Dondon

Os fio que é meu, que é meu
E que é dela
Rebenta a goela de tanto chorá
O rio tá seco, o sol não vem não
Vortemos pra casa
Chamando Dondon"

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

Mas o sofrimento, pra Cartola, também vem na euforia da paixão; ao evocar a "Senhora Tentação", o eu-lírico confessa sua paixão, mas sofre por isso; sem nenhum motivo que o impeça de consumá-la, sofre somente por sentir e não querer, e pede à "romântica senhora Tentação" que o livre dos efeitos embriagantes desse sentimento. Não há uma explicação do porquê: desilusão antiga, compromisso com outra, proibição moral, ocupação inadiável... O eu-lírico simplesmente sofre por estar apaixonado, e não querer estar.

"Sinto abalada minha calma,
Embriagada minha alma,
Efeitos da tua sedução,
Oh! Minha romântica senhora Tentação,
Não deixes que eu venha a sucumbir,
Neste vendaval de paixão.
Jamais pensei em minha vida,
Sentir tamanha emoção,
Será que o amor por ironia,
Move esta fantasia vestida de obsessão,
A ti confesso que me apaixonei,
Será uma maldição, não sei,
Sinto abalada minha calma,
Embriagada minha alma,
Efeitos da tua sedução,
Oh! Minha romântica senhora Tentação,
Não deixes que eu venha a sucumbir,
Neste vendaval de paixão."

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)

E o amor do eu-lírico se realiza na última faixa do disco. "Cordas de Aço" é uma curta elegia ao companheiro do sambista, o violão. Nela, é cantado que  o instrumento é o único capaz de entender os porquês do poeta, o violão; aliás, nas letras das canções deste disco, o violão é também o único a ser tocado, literalmente, pelo eu-lírico; o amor entre o sambista e o violão é o único concreto, físico, tangível e real. Mas aqui, mesmo assim, há ainda o lamento, muito perceptível em todas as partes da canção (andamento, arranjo, interpretação vocal, letra...), com utilização, inclusive, da interjeição "Ah!" preposta ao vocativo, bastante comum aos "ais" lamentosos das cantigas de amigo medievais. Talvez possa ser a razão deste lamento final justamente o fato de um violão, objeto inanimado, ser o único amor possível pra este sambista.

"Ah, essas cordas de aço
Este minúsculo braço
Do violão que os dedos meus acariciam
Ah, este bojo perfeito
Que trago junto ao meu peito
Só você violão
Compreende porque perdi toda alegria
E no entanto meu pinho
Pode crer, eu adivinho
Aquela mulher
Até hoje está nos esperando
Solte o teu som da madeira
Eu você e a companheira
Na madrugada iremos pra casa
Cantando..."

(Cartola - Cartola II - Discos Marcus Pereira; Rio de Janeiro, 1976)




A GLÓRIA NO FIM

Cartola, bem nascido culturalmente, entrou cedo na tragédia da vida, e perambulou: de casa em casa, de bairro em bairro, de mulher em mulher, até se encontrar no Morro da Mangueira, nos seios de Dona Zica e no braço do violão. Fez o que podia e o que era preciso pra continuar vivo e íntegro. Compôs e cantou sempre, mesmo no esquecimento. E, num lance de dados, foi redescoberto quando o país carecia de raiz autêntica e sincera. Gravou seu primeiro disco, como interprete das próprias canções, em 1974, aos 66 anos,  e foi sucesso até o fim de sua vida, 6 anos depois.

Este disco, como os demais, é uma coletânea de desilusão e sofrimento, que talvez reflita a própria vida do poeta sambista. E o que teria pra contar e deixar como legado um mulato morador do morro que, apesar de talentoso, só foi reconhecido na velhice? Nada que não fosse "O Mundo é um Moinho", " Preciso Me Encontrar" e "Cordas de Aço": testamento perene pro jovem sonhador que pretende mudar qualquer coisa pra melhor, desde sua condição até a condição do próximo. A mensagem de Cartola é totalmente fatalista: não adianta querer, não adianta lutar, a glória só virá quando for tempo. Pra Cartola, a glória veio no fim, que talvez seja a única honesta e justa.

"  Na madrugada iremos pra casa / Cantando..."