Meus Caros Amigos |
-É UMA PENA NÃO TER ESCOLHIDO INICIAR A SÉRIE POR ESTE TEXTO,
MAIS INSERIDO NO ATUAL CONTEXTO POLÍTICO E SOCIAL-
Menestrel e Bufão
Pois é... em 1964, como em 1954 (não há muito tempo), também houve um golpe (como o de 12 de maio de 2016). Neste ano (64), o congresso também tirou do poder um presidente, João Goulart, que pretendia manter as conquistas dos trabalhadores conseguidas durante a liderança de Getúlio, perseguido pelo mesmo congresso que tentava forçá-lo a renunciar (acabou por cometer suicídio), e ampliar os atos em benefício dos desempregados e dos desprovidos de igualdade social.
Jango foi deposto, e uma junta militar (os homens bons do país) passou a mandar e desmandar na pátria, que devia ser amada e idolatrada por todos que nela vivessem. Foram mais dez anos de tirania da elite que perseguiu, prendeu torturou e matou qualquer um que dela discordasse. Muitos aristas, jornalistas e intelectuais fugiram e exilaram-se em outros países pra escapar desta sanha da ditadura por quem ousasse pensar que um outro Brasil, talvez, fosse possível: com igualdade social e econômica, com liberdade de ação e pensamento e, sobretudo, com mais paz e felicidades pra todos.
Tal estado de exceção durou até 1974, quando os primeiros decretos de anistia aos exilados e perseguidos começaram a entrar em vigência, mas , nesse ano, ainda éramos uma pátria governada por ditadores militares que decidiam entre si quem é que mandaria, o quanto e quando, até 1984 quando o congresso decidiu, com pesar do povo que pensava, que, em 1985, haveria eleição para presidente com candidatos civis, ainda que de forma indireta, ou seja, os parlamentares é que escolheriam o próximo governante do Brasil, não o povo. A partir de então, haveria um respiro de alívio pra quem buscava liberdade de expressão e de ação no país, e os exilados sobreviventes puderam retornar, sob vigilância, à sua terra natal.
No meio disso tudo, em 1966, o brasileiro do Rio de Janeiro, Francisco Buarque de Hollanda, inicia sua carreira musical lançando o disco "Chico Buarque de Hollanda", que continha canções como "A Banda", "A Rita", "Pedro Pedreiro", e mais, que além de sucessos clássicos, são também ilustrações certas do caminho que trilharia a partir de então: misturar crítica social e amor, alegria e sofrimento, linguagem popular e pensamento refinado, samba e texto poético. Assim, também, dava início às futuras perseguições por parte da censura, e consequente exílio, por conta de seu engajamento político e ousadia e criatividade discursiva.
Mesmo caçado feito bandido e vigiado como se terrorista fosse, o menestrel (mais de planejar e compor do que de executar) e bufão (piadista crítico, amado pelo povo e odiado pelo poder, por isso necessário) nunca deixou de se expressar politicamente, tendo que, por causa da censura, com inteligência, disfarçar seu objetivo de modo que os censores não identificassem, em suas canções, intenções subversivas. Assim, surgiram obras célebres como "Cálice" e "João e Maria", que diziam sem falar.
Depois de voltar do autoexílio na Itália (69 - 70) e lançar álbuns clássicos da MPB: "Apesar de Você" (1970) "Construção" (1971), "Quando o Carnaval Chegar" (1972) e "Sinal Fechado" (1974), trouxe à luz "Meus Caros Amigos", em 1976, desafiando, abertamente, os desmandos do regime militar no Brasil.
O álbum abre com "O Que Será Que Será? (À Flor Da Pele)", cantado com Milton Nascimento (em breve também nessa série), canção que, de modo genial, mais uma vez, flerta com a subversão contra à censura e à ditadura. Os versos, de profunda riqueza retórica, questionam o interlocutor (ouvinte) sobre aquilo que angustia o eu-lírico, ficando a cabo de quem ouve entender e dar uma resposta, mesmo que só pra si. Porém o texto é tão bem construído que fica praticamente impossível afirmar que sim, é da repressão dos militares que ela trata; para compreendê-la em toda sua profundidade é preciso estar muito atento, a todo momento, às pequenas nuances que justificariam a ideia de ser um discurso contra a censura. A letra foi tão bem feita, que qualquer desavisado, qualquer um que não tenha a menor ideia do que acontecia nas décadas de falta de liberdade política não entenderá o aviso e pensará se tratar de mais uma canção de quem ama e não tem o ser amado (seja o que for); eu, inclusive, ao ouvi-la pela primeira vez, em família, sem saber de 64 (meu pais, que também só conheciam o mundo através da mídia, parcial, a mesma que nos 'informa' hoje, não podiam me ensinar sobre isso), não pude identificar as marcas de luta e resistência contra os golpistas de 31 de março: achava eu ser o lamento de mais um desvalido por falta de amor; "À Flor Da Pele", nesse tempo (1990), era pra mim, ainda, sinônimo de amor visivelmente notável, não fazia ideia da amplitude de uso que se poderia dar a essa expressão, coisa que também acabou por confundir os censores em 1976, como a mim: um garoto de 14 anos em 1990.
A segunda faixa do disco é "Mulheres De Atenas", escrita por Chico e Augusto Boal para a peça "Lisa, a Mulher Libertadora", de Boal; enigmática pra mim até hoje, assim como bela (que melhor forma de cantar a mulher se não por seus enigmas e belezas?). Quando a ouvi pela primeira vez (no mesmo 1990 de "O que será que será?"), não entendi bulhufas, primeiro por que nasci e cresci numa família onde o machismo (e qualquer forma de repressão) era tido como negativo, e Chico Buarque era muito ouvido por lá, depois por que eu mesmo havia entendido essa canção como uma simples apologia à resignação feminina; isso por que, sem visão semiótica ainda, me atinha apenas às palavras da canção para interpretá-la, não "lia" a entonação vocal, andamento, ou harmonização como partes integrantes da construção de sentido. Hoje entendo o entoamento que intenta nos levar a ter pesar por essas mulheres, e por esses homens, que, agindo como se a força e a virilidade fossem o único fundamento e princípio essencial de um estado consolidado, viram sua riqueza e identidade se acabarem em guerras sem fim: Atenas, como a capital de qualquer império, por forças das circunstâncias, teve seu apogeu, mas que não se sustentou, principalmente por ser uma cultura de guerra (pra manter-se, deveriam estar sempre em guerra ou prontos para guerra, que não era lugar nem assunto para mulheres); as mulheres, nesse contexto, tinham que se conformar e esperar. Mas Atenas, como a Pérsia e o Egito, decaiu, Roma ruiu e a União Europeia...
Hoje leio claramente a sentido dado pela levada da canção (melancólica e irônica como quem reconhece um fim trágico no por vir), algo como: 'Olha só como sofreram, e, no fim, não valeu de muita coisa'.
Depois, vem "Olhos Nos Olhos", clássica e largamente difundida como belíssima canção de lamento e vingança, bem ao gosto popular do brasileiro. Esta sim pode ser entendida como uma canção de amor, onde uma mulher, antes abandonada por seu amado, que agora se percebe em um estado em que, caso encontre o tal, pode lhe olhar nos olhos e mostrar o quão feliz e bem ficou sem ele, coisa que este, talvez, não pudesse suportar tão bem; isso tudo imaginado por um eu-lírico feminino que, certamente, já passou por isso antes, pois sabe muito bem, por antecipação, cada passo que vai dar depois da separação: da tristeza ao ressurgimento da alegria. É mesmo uma canção de amor.
Ou não...
Fato é que, se trocarmos o eu-lírico feminino pela figura do próprio Chico (ou de alguém que se encaixe um pouco na trajetória dele) e trocarmos o 'antagonista' (o homem que abandona) pelos militares no poder, temos outra interpretação, e muito mais interessante:
1. O eu-lírico é abandonado e sabe que vai ficar mal;
1.a. Os militares dizem que o Brasil é pra quem concorda com seus comandantes e abandona os opositores à própria sorte, inclusive no exílio, como feito com o próprio Chico;
2. O eu-lírico se recompõe e se interessa por outros homens, até melhores que o antigo;
2. a. Os exilados, e Chico Buarque, encontram abrigo e simpatia em outros países, muito melhores que o nosso;
3. O eu-lírico se predispõe a uma visita futura feita pelo amado que o abandonou e até promete uma ajuda caso este precise;
3. a. Os brasileiros, até mesmo os que deles (os exilados) se desagradaram, estavam sempre ávidos por novidades do exilado, Chico Buarque, ou do repatriado, Chico Buarque; até lhe encomendavam canções para novelas e shows exclusivos para redes de TV;
4. O eu-lírico aposta numa possível falta de compostura do amado ao não suportar ver sua mulher, por ele abandonada, tão bem e muito feliz;
4. a. Chico Buarque, até hoje, continua a ouvir o despeito da elite: "Mas é riquinho que foge pra Europa", "Mas e filhinho de papai intelectual", "Mas canta feito mulher", "Mas é sogro do Carlinhos Brown", "É petista vagabundo" e outros tantos despeitos dignos de quem não consegue aceitar seu sucesso, assim como a vitória de partidos que realmente lutam pelo povo e por seus direitos.
Outra visão do mesmo, não?
A quarta canção é "Você Vai Me Seguir", mais uma engraçada coincidência temática com o que acontecia no Brasil daquele tempo a quem se posicionasse contra o poder vigente.
Ou não.
Pode ser também uma canção sobre as patologias psicológicas de alguém obcecado por outrem. Melhor o leitor mesmo decidir com os versos e música a disposição:
"Você vai me Seguir": Você vai me seguir aonde quer que eu vá / Você vai me servir, você vai se curvar / Você vai resistir, mas vai se acostumar / Você vai me agredir, você vai me adorar / Você vai me sorrir, você vai se enfeitar / E vem me seduzir / Me possuir, me infernizar / Você vai me trair, você vem me beijar / Você vai me cegar e eu vou consentir / Você vai conseguir enfim me apunhalar / Você vai me velar, chorar, vai me cobrir / e me ninar
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigos - Universal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)
O Lado A fecha com "Vai Trabalhar, Vagabundo", composta por Chico para o filme homônimo do diretor Hugo Carvana. É outro grito desesperado de quem era, como hoje acontece, 'forçado', por quem já tinha muito, a contribuir para que este tivesse ainda mais, sem ganhar muito com isso, além da própria vida de cansaço e de apuros. A canção é ligeira no andamento e gritada no cantar: desenho perfeito do cotidiano do humano comum, que se apressa pra tudo (que não lhe pertence) e obedece a qualquer que lhe levante a voz (mesmo sem ter esse direito); a construção melódica e textual é também bastante circular, forma testada antes em "Construção", "Deus lhe pague", "Cotidiano", "Samba de Orly", entre outras, que provoca um efeito de continuidade e intermitência (irritantes) sensacional; neste tipo de construção, temos a nítida sensação, pretendida pelo autor, de estarmos num penoso cotidiano infinito e sem sentido real.
Se o leitor ainda não conhece a canção, assim como as outras que citei aqui, vale muito a pena conferir.
O Lado B traz "Corrente" como primeira faixa, Samba tipo Gafieira (aquele bem comportado, e dançante, feito na medida pra divertir o bom homem de negócios e a recatada mulher de sociedade, ambos com gosto refinado e apurado pra tudo); neste samba genial, o eu-lírico diz que abandona o samba "errado" que fazia antes, em que costumava "contestar e botar defeito", pra fazer um "samba bem pra frente" com o fim único de harmonizar com a felicidade evidente da "multidão" que samba "contente"; segundo o eu-lírico, "Só mesmo embriagado ou muito louco / Pra contestar e pra botar defeito", como fazia antes; agora, ainda segundo ele "o samba está bem melhorado"; mas veja que "melhorado" é a voz passiva, e significa que foi "melhorado" por alguém, não que melhorou por si; o negócio é descobrir o agente da passiva nessa oração, aquele que melhorou o tal de samba, tornado "errado".
E ele, o eu-lírico, só fez essa breve concessão pra ver a "multidão" também "contente" com um samba seu, agora "melhorado" (depois de "tomar na cara").
"Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho"
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigos - Universal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)
"A Noiva da Cidade", segunda faixa deste Lado. foi escrita por Chico Buarque e Francis Hime para o filme homônimo, de Alex Vianny, e é outro exemplo da genialidade alegórica dos compositores. Inicia com uma cantiga de lamento e aviso contra o "Tutu-Marambá", monstro do folclore brasileiro que surge durante a noite pra levar as crianças.
"Tutu-Marambá não venha mais cá
Que a mãe da criança te manda matar''
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigos - Universal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)
A princípio, é bem sabido que uma das armas daqueles que detém o poder, pais inclusive, é tentar incutir medo em seus subordinados, de modo que estes não se aventurem em novidades desconhecidas, como a ideologia socialista por exemplo.
É bem sabido também que este artifício foi largamente usado pelos presidentes do período militar para manter a grande massa desinformada com receio e ressabiada com os ideias subversivos (e artistas e intelectuais que compactuavam com eles); estes subversivos eram demonizados a tal ponto, que, sem informação correta, era possível tê-los por monstros verdadeiros.
É bem sabido também que, neste período, respectivamente, o Brasil era governado pelos Generais: Emílio Médici e Ernesto Geisel, que incentivavam amplamente a replicação do mote "Brasil, ame-o ou deixe-o", um recado claro e direto para aqueles "esquerdistas" que não concordavam com os ditames dos presidentes militares, líderes do "Milagre Econômico", ou seja, se não está de acordo, dê o fora!
É bem sabido, ainda, que muitos brasileiros estavam exilados desde que o cerco às pessoas com ideologia de esquerda endureceu e se intensificou, e que, caso voltassem ao se exilarem, seriam perseguidos e presos (alguns, desobedientes, até acabaram mortos ou desaparecidos por tentarem).
Isto posto, fica bem clara a figura alegórica do Tutu-Marambá como representação do pensador, ou trabalhador, subversivo: demonizado, e ameaçado, pelos militares.
Este "Tutu-Marambá", o agente da narrativa, se espanta com a moça (figuração para quem, "do alto", precisa de proteção contra a subversão), que faz o que quer sem se incomodar com quem possa lhe ver da janela pra dentro. Esta alegoria se encaixa muito bem com o que acontecia durante a ditadura: presidentes militares fazendo o que quisessem, e do modo que quisesse, a fim de manterem a ordem e o progresso e protegerem a riqueza e a propriedade de seus cidadãos (mesmo que a grande massa fosse completamente desprovida de quaisquer posses); fazendo construções imensas, de onde se desviava muita verba, e, muitas vezes, permanecendo inacabadas ou se mostrando sem urgência e sem necessidade prática. Tudo isso fazia do Brasil uma imensa vitrine de mandos e desmandos, de muita riqueza concentrada nas mãos de poucos e de muito dinheiro público mal utilizado e corrompido.
...e o "Tutu-Marambá" espantado em ver que a moça não se importa em ser vista, e desejada, por tal monstro, que pode, e quer, tomar seu lugar.
"Passaredo", também de Chico Buarque e Francis Hime, e composta para o filme "A Noiva da Cidade", é construída com alegorias sobre o brasileiro de verdade (aquele que realmente é da terra e não aquele que quer usurpá-la) na figura de aves diversas, endêmicas do Brasil, que são avisadas pelo eu-lírico, narrador, pra que fujam, pois "O homem vem aí" pra tomar posse do que sempre fora delas. Bem parecido com os decretos militares que passaram varrendo grandes brasileiros pra muito longe do Brasil de perseguição e de tortura.
"Basta Um Dia", a quarta faixa do Lado B de "Meus Caros Amigos", remete ao mesmo tema e ao mesmo tom de "Gota d'água", composta um ano um antes pra sua peça com o mesmo título. O eu-lírico, entoando como a voz de alguém que se segura em seus sentimento e pensamentos, afirma que um único dia seria suficiente para que pudesse acabar com toda angústia que sente, resultado de um evento também de um único dia. O interessante na canção é que o eu-lírico fala do ponto de vista de alguém destituído de poder, mas que, talvez, até agradeça o fato de não o ter, tamanha a violência represada que suporta; numa voz feminina, seria a oposição àquelas "Mulheres de Atenas" que tanto se resignam, apesar de violentadas, ou seja, este eu-lírico feminino não pode ser exaltado, por quem detém o poder, por que é de responder a atos de violência e de descaso com igual intensidade (caso não se segure).
Interessante notar como, no disco, Chico Buarque vai colocando a figura feminina ora como vilã ou algo a ser evitado (registrada pelo eu-lírico), ora como aquela que sofre e age ao mesmo tempo, ou intenta agir (na figura o eu-lírico).
O compositor escolheu a faixa título do LP, "Meu Caro Amigo", pra fechar o disco, assim com Raul Seixas em "Nasci há 10 mil Anos", como um modo de explicar e ratificar todo sentimento exposto pelo eu-lírico da canção até aqui. Estruturada como uma carta entre amigos, esta diz dos absurdos e dos abusos por que tem passado num país de onde teria saído o interlocutor, o qual estaria ávido por notícias de sua terra. A carta (canção) serviria também como uma espécie de desabafo da parte de quem a escreve, muito insatisfeito com a situação de seu país, e um tipo de aviso para o destinatário, pra que se guarde, mais um pouco, de querer voltar , pois não seria nada fácil viver ali, como não o é para o remetente.
Em resumo, o disco é uma espécie de desabafo das angústias e dos anseios de quem se sente usurpado e vilipendiado por aqueles que detêm o poder, culminando em "Meu Caro Amigo", onde o autor tem coragem de dar um aviso claro e de modo muito simples pra qualquer brasileiro (e até estrangeiro) entender:
"Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita careta pra engolir a transação
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão"
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigos - Universal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)
REFERÊNCIA