domingo, 25 de setembro de 2016

MEUS CAROS AMIGOS

Meus Caros Amigos


-É UMA PENA NÃO TER ESCOLHIDO INICIAR A SÉRIE POR ESTE TEXTO,
 MAIS INSERIDO NO ATUAL CONTEXTO POLÍTICO E SOCIAL-

Menestrel e Bufão

Pois é... em 1964, como em 1954 (não há muito tempo), também houve um golpe (como o de 12 de maio de 2016). Neste ano (64), o congresso também tirou do poder um presidente, João Goulart, que pretendia manter as conquistas dos trabalhadores conseguidas durante a liderança de Getúlio, perseguido pelo mesmo congresso que tentava forçá-lo a renunciar (acabou por cometer suicídio), e ampliar os atos em benefício dos desempregados e dos desprovidos de igualdade social.

Jango foi deposto, e uma junta militar (os homens bons do país) passou a mandar e desmandar na pátria, que devia ser amada e idolatrada por todos que nela vivessem. Foram mais dez anos de tirania da elite que perseguiu, prendeu torturou e matou qualquer um que dela discordasse. Muitos aristas, jornalistas e intelectuais fugiram e exilaram-se em outros países pra escapar desta sanha da ditadura por quem ousasse pensar que um outro Brasil, talvez, fosse possível: com igualdade social e econômica, com liberdade de ação e pensamento e, sobretudo, com mais paz e felicidades pra todos.

Tal estado de exceção durou até 1974, quando os primeiros decretos de anistia aos exilados e perseguidos começaram a entrar em vigência, mas , nesse ano, ainda éramos uma pátria governada por ditadores militares que decidiam entre si quem é que mandaria, o quanto e quando, até 1984 quando o congresso decidiu, com pesar do povo que pensava, que, em 1985, haveria eleição para presidente com candidatos civis, ainda que de forma indireta, ou seja, os parlamentares é que escolheriam o próximo governante do Brasil, não o povo. A partir de então, haveria um respiro de alívio pra quem buscava liberdade de expressão e de ação no país, e os exilados sobreviventes puderam retornar, sob vigilância, à sua terra natal.

No meio disso tudo, em 1966, o brasileiro do Rio de Janeiro, Francisco Buarque de Hollanda, inicia sua carreira musical lançando o disco "Chico Buarque de Hollanda", que continha canções como "A Banda", "A Rita", "Pedro Pedreiro", e mais, que além de sucessos clássicos, são também ilustrações certas do caminho que trilharia a partir de então: misturar crítica social e amor, alegria e sofrimento, linguagem popular e pensamento refinado, samba e texto poético. Assim, também, dava início às futuras perseguições por parte da censura, e consequente exílio, por conta de seu engajamento político e ousadia e criatividade discursiva.

Mesmo caçado feito bandido e vigiado como se terrorista fosse, o menestrel (mais de planejar e compor do que de executar) e bufão (piadista crítico, amado pelo povo e odiado pelo poder, por isso necessário) nunca deixou de se expressar politicamente, tendo que, por causa da censura, com inteligência, disfarçar seu objetivo de modo que os censores não identificassem, em suas canções, intenções subversivas. Assim, surgiram obras célebres como "Cálice" e "João e Maria", que diziam sem falar.


Depois de voltar do autoexílio na Itália (69 - 70) e lançar álbuns clássicos da MPB: "Apesar de Você" (1970) "Construção" (1971), "Quando o Carnaval Chegar" (1972) e "Sinal Fechado" (1974), trouxe à luz "Meus Caros Amigos", em 1976, desafiando, abertamente, os desmandos do regime militar no Brasil.

O álbum abre com "O Que Será Que Será? (À Flor Da Pele)", cantado com Milton Nascimento (em breve também nessa série), canção que, de modo genial, mais uma vez, flerta com a subversão contra à censura e à ditadura. Os versos, de profunda riqueza retórica, questionam o interlocutor (ouvinte) sobre aquilo que angustia o eu-lírico, ficando a cabo de quem ouve entender e dar uma resposta, mesmo que só pra si. Porém o texto é tão bem construído que fica praticamente impossível afirmar que sim, é da repressão dos militares que ela trata; para compreendê-la em toda sua profundidade é preciso estar muito atento, a todo momento, às pequenas nuances que justificariam a ideia de ser um discurso contra a censura. A letra foi tão bem feita, que qualquer desavisado, qualquer um que não tenha a menor ideia do que acontecia nas décadas de falta de liberdade política não entenderá o aviso e pensará se tratar de mais uma canção de quem ama e não tem  o ser amado (seja o que for); eu, inclusive, ao ouvi-la pela primeira vez, em família, sem saber de 64 (meu pais, que também só conheciam o mundo através da mídia, parcial, a mesma que nos 'informa' hoje, não podiam me ensinar sobre isso), não pude identificar as marcas de luta e resistência contra os golpistas de 31 de março: achava eu ser o lamento de mais um desvalido por falta de amor; "À Flor Da Pele", nesse tempo (1990), era pra mim, ainda, sinônimo de amor visivelmente notável, não fazia ideia da amplitude de uso que se poderia dar a essa expressão, coisa que também acabou por confundir os censores em 1976, como a mim: um garoto de 14 anos em 1990.

A segunda faixa do disco é "Mulheres De Atenas", escrita por Chico e Augusto Boal para a peça "Lisa, a Mulher Libertadora", de Boal; enigmática pra mim até hoje, assim como bela (que melhor forma de cantar a mulher se não por seus enigmas e belezas?). Quando a ouvi pela primeira vez (no mesmo 1990 de "O que será que será?"), não entendi bulhufas, primeiro por que nasci e cresci numa família onde o machismo (e qualquer forma de repressão) era tido como negativo, e Chico Buarque era muito ouvido por lá, depois por que eu mesmo havia entendido essa canção como uma simples apologia à resignação feminina; isso por que, sem visão semiótica ainda, me atinha apenas às palavras da canção para interpretá-la, não "lia" a entonação vocal, andamento, ou harmonização como partes integrantes da construção de sentido. Hoje entendo o entoamento que intenta nos levar a ter pesar por essas mulheres, e por esses homens, que, agindo como se a força e a virilidade fossem o único fundamento e princípio essencial de um estado consolidado, viram sua riqueza e identidade se acabarem em guerras sem fim: Atenas, como a capital de qualquer império, por forças das circunstâncias, teve seu apogeu, mas que não se sustentou, principalmente por ser uma cultura de guerra (pra manter-se, deveriam estar sempre em guerra ou prontos para guerra, que não era lugar nem assunto para mulheres); as mulheres, nesse contexto, tinham que se conformar e esperar. Mas Atenas, como a Pérsia e o Egito, decaiu, Roma ruiu e a União Europeia...

Hoje leio claramente a sentido dado pela levada da canção (melancólica e irônica como quem reconhece um fim trágico no por vir), algo como: 'Olha só como sofreram, e, no fim, não valeu de muita coisa'.

Depois, vem "Olhos Nos Olhos", clássica e largamente difundida como belíssima canção de lamento e vingança, bem ao gosto popular do brasileiro. Esta sim pode ser entendida como uma canção de amor, onde uma mulher, antes abandonada por seu amado, que agora se percebe em um estado em que, caso encontre o tal, pode lhe olhar nos olhos e mostrar o quão feliz e bem ficou sem ele, coisa que este, talvez, não pudesse suportar tão bem; isso tudo imaginado por um eu-lírico feminino que, certamente, já passou por isso antes, pois sabe muito bem, por antecipação, cada passo que vai dar depois da separação: da tristeza ao ressurgimento da alegria. É mesmo uma canção de amor.

Ou não...

Fato é que, se trocarmos o eu-lírico feminino pela figura do próprio Chico (ou de alguém que se encaixe um pouco na trajetória dele) e trocarmos o 'antagonista' (o homem que abandona) pelos militares no poder, temos outra interpretação, e muito mais interessante:

1. O eu-lírico é abandonado e sabe que vai ficar mal;

1.a. Os militares dizem que o Brasil é pra quem concorda com seus comandantes e abandona os opositores à própria sorte, inclusive no exílio, como feito com o próprio Chico;

2. O eu-lírico se recompõe e se interessa por outros homens, até melhores que o antigo;

2. a. Os exilados, e Chico Buarque, encontram abrigo e simpatia em outros países, muito melhores que o nosso;

3. O eu-lírico se predispõe a uma visita futura feita pelo amado que o abandonou e até promete uma ajuda caso este precise;

3. a. Os brasileiros, até mesmo os que deles (os exilados) se desagradaram, estavam sempre ávidos por novidades do exilado, Chico Buarque, ou do repatriado, Chico Buarque; até lhe encomendavam canções para novelas e shows exclusivos para redes de TV;

4. O eu-lírico aposta numa possível falta de compostura do amado ao não suportar ver sua mulher, por ele abandonada, tão bem e muito feliz;

4. a. Chico Buarque, até hoje, continua a ouvir o despeito da elite: "Mas é riquinho que foge pra Europa", "Mas e filhinho de papai intelectual", "Mas canta feito mulher", "Mas é sogro do Carlinhos Brown", "É petista vagabundo" e outros tantos despeitos dignos de quem não consegue aceitar seu sucesso, assim como a vitória de partidos que realmente lutam pelo povo e por seus direitos.

Outra visão do mesmo, não?

A quarta canção é "Você Vai Me Seguir", mais uma engraçada coincidência temática com o que acontecia no Brasil daquele tempo a quem se posicionasse contra o poder vigente.

Ou não.

Pode ser também uma canção sobre as patologias psicológicas de alguém obcecado por outrem. Melhor o leitor mesmo decidir com os versos e música a disposição:
"Você vai me Seguir": Você vai me seguir aonde quer que eu vá / Você vai me servir, você vai se curvar / Você vai resistir, mas vai se acostumar / Você vai me agredir, você vai me adorar / Você vai me sorrir, você vai se enfeitar / E vem me seduzir / Me possuir, me infernizar / Você vai me trair, você vem me beijar / Você vai me cegar e eu vou consentir / Você vai conseguir enfim me apunhalar / Você vai me velar, chorar, vai me cobrir / e me ninar
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigosUniversal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)

O Lado A fecha com "Vai Trabalhar, Vagabundo", composta por Chico para o filme homônimo do diretor Hugo Carvana. É outro grito desesperado de quem era, como hoje acontece, 'forçado', por quem já tinha muito, a contribuir para que este tivesse ainda mais, sem ganhar muito com isso, além da própria vida de cansaço e de apuros. A canção é ligeira no andamento e gritada no cantar: desenho perfeito do cotidiano do humano comum, que se apressa pra tudo (que não lhe pertence) e obedece a qualquer que lhe levante a voz (mesmo sem ter esse direito); a construção melódica e textual é também bastante circular, forma testada antes em "Construção", "Deus lhe pague", "Cotidiano", "Samba de Orly", entre outras, que provoca um efeito de continuidade e intermitência (irritantes) sensacional; neste tipo de construção, temos a nítida sensação, pretendida pelo autor, de estarmos num penoso cotidiano infinito e sem sentido real.

Se o leitor ainda não conhece a canção, assim como as outras que citei aqui, vale muito a pena conferir.

O Lado B traz "Corrente" como primeira faixa, Samba tipo Gafieira (aquele bem comportado, e dançante, feito na medida pra divertir o bom homem de negócios e a recatada mulher de sociedade, ambos com gosto refinado e apurado pra tudo); neste samba genial, o eu-lírico diz que abandona o samba "errado" que fazia antes, em que costumava "contestar e botar defeito", pra fazer um "samba bem pra frente" com  o fim único de harmonizar com a felicidade evidente da "multidão" que samba "contente"; segundo o eu-lírico, "Só mesmo embriagado ou muito louco / Pra contestar e pra botar defeito", como fazia antes; agora, ainda segundo ele "o samba está bem melhorado"; mas veja que "melhorado" é a voz passiva, e significa que foi "melhorado" por alguém, não que melhorou por si; o negócio é descobrir o agente da passiva nessa oração, aquele que melhorou o tal de samba, tornado "errado".

E ele, o eu-lírico, só fez essa breve concessão pra ver a "multidão" também "contente" com um samba seu, agora "melhorado" (depois de "tomar na cara").

"Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho"
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigos - Universal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)

"A Noiva da Cidade", segunda faixa deste Lado. foi escrita por Chico Buarque e Francis Hime para o filme homônimo, de Alex Vianny, e é outro exemplo da genialidade alegórica dos compositores. Inicia com uma cantiga de lamento e aviso contra o "Tutu-Marambá", monstro do folclore brasileiro que surge durante a noite pra levar as crianças.

"Tutu-Marambá não venha mais cá
Que a mãe da criança te manda matar''
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigos - Universal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)

A princípio, é bem sabido que uma das armas daqueles que detém o poder, pais inclusive, é tentar incutir medo em seus subordinados, de modo que estes não se aventurem em novidades desconhecidas, como a ideologia socialista por exemplo.

É bem sabido também que este artifício foi largamente usado pelos presidentes do período militar  para manter a grande massa desinformada com receio e ressabiada com os ideias subversivos (e artistas e intelectuais que compactuavam com eles); estes subversivos eram demonizados a tal ponto, que, sem informação correta, era possível tê-los por monstros verdadeiros.

É bem sabido também que, neste período, respectivamente, o Brasil era governado pelos Generais: Emílio Médici e Ernesto Geisel, que incentivavam amplamente a replicação do mote "Brasil, ame-o ou deixe-o", um recado claro e direto para aqueles "esquerdistas" que não concordavam com os ditames dos presidentes militares, líderes do "Milagre Econômico", ou seja, se não está de acordo, dê o fora!

É bem sabido, ainda, que muitos brasileiros estavam exilados desde que o cerco às pessoas com ideologia de esquerda endureceu e se intensificou, e que, caso voltassem ao se exilarem, seriam perseguidos e presos (alguns, desobedientes, até acabaram mortos ou desaparecidos por tentarem).

Isto posto, fica bem clara a figura alegórica do Tutu-Marambá como representação do pensador, ou trabalhador, subversivo: demonizado, e ameaçado, pelos militares.

Este "Tutu-Marambá", o agente da narrativa, se espanta com a moça (figuração para quem, "do alto", precisa de proteção contra a subversão), que faz o que quer sem se incomodar com quem possa lhe ver da janela pra dentro. Esta alegoria se encaixa muito bem com o que acontecia durante a ditadura: presidentes militares fazendo o que quisessem, e do modo que quisesse, a fim de manterem a ordem e o progresso e protegerem a riqueza e a propriedade de seus cidadãos (mesmo que a grande massa fosse completamente desprovida de quaisquer posses); fazendo construções imensas, de onde se desviava muita verba, e, muitas vezes, permanecendo inacabadas ou se mostrando sem urgência e  sem necessidade prática. Tudo isso fazia do Brasil uma imensa vitrine de mandos e desmandos, de muita riqueza concentrada nas mãos de poucos e de muito dinheiro público mal utilizado e corrompido.

...e o "Tutu-Marambá" espantado em ver que a moça não se importa em ser vista, e desejada, por tal monstro, que pode, e quer, tomar seu lugar.

"Passaredo", também de Chico Buarque e Francis Hime, e composta para o filme "A Noiva da Cidade", é construída com alegorias sobre o brasileiro de verdade (aquele que realmente é da terra e não aquele que quer usurpá-la) na figura de aves diversas, endêmicas do Brasil, que são avisadas pelo eu-lírico, narrador, pra que fujam, pois "O homem vem aí" pra tomar posse do que sempre fora delas. Bem parecido com os decretos militares que passaram varrendo grandes brasileiros pra muito longe do Brasil de perseguição e de tortura.

"Basta Um Dia", a quarta faixa do Lado B de "Meus Caros Amigos", remete ao mesmo tema e ao mesmo tom de "Gota d'água", composta um ano um antes pra sua peça com o mesmo título. O eu-lírico, entoando como a voz de alguém que se segura em seus sentimento e pensamentos, afirma que um único dia seria suficiente para que pudesse acabar com toda angústia que sente, resultado de um evento também de um único dia. O interessante na canção é que o eu-lírico fala do ponto de vista de alguém destituído de poder, mas que, talvez, até agradeça o fato de não o ter, tamanha a violência represada que suporta; numa voz feminina, seria a oposição àquelas  "Mulheres de Atenas" que tanto se resignam, apesar de violentadas, ou seja, este eu-lírico feminino não pode ser exaltado, por quem detém o poder, por que é de responder a atos de violência e de descaso com igual intensidade (caso não se segure).

Interessante notar como, no disco, Chico Buarque vai colocando a figura feminina ora como vilã ou algo a ser evitado (registrada pelo eu-lírico), ora como aquela que sofre e age ao mesmo tempo, ou intenta agir (na figura o eu-lírico).

O compositor escolheu a faixa título do LP, "Meu Caro Amigo",  pra fechar o disco, assim com Raul Seixas em "Nasci há 10 mil Anos", como um modo de explicar e ratificar todo sentimento exposto pelo eu-lírico da canção até aqui. Estruturada como uma carta entre amigos, esta diz dos absurdos e dos abusos por que tem passado num país de onde teria saído o interlocutor, o qual estaria ávido por notícias de sua terra. A carta (canção) serviria também como uma espécie de desabafo da parte de quem a escreve, muito insatisfeito com a situação de seu país, e um tipo de aviso para o destinatário, pra que se guarde, mais um pouco, de querer voltar , pois não seria nada fácil viver ali, como não o é para o remetente.

Em resumo, o disco é uma espécie de desabafo das angústias e dos anseios de quem se sente usurpado e vilipendiado por aqueles que detêm o poder, culminando em "Meu Caro Amigo", onde o autor tem coragem de dar um aviso claro e de modo muito simples pra qualquer brasileiro (e até estrangeiro) entender:

"Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita careta pra engolir a transação
Que a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão"
(BUARQUE, Chico - Meus caros amigos - Universal
Music;Rio de Janeiro, Janeiro de 1976)


REFERÊNCIA


CHICO BUARQUE


MEUS CAROS AMIGOS


sexta-feira, 23 de setembro de 2016

INFINITO AGORA

Infinito Agora
Além de gente, além de vida, além do próprio estado, existe também Rock (e do bom) no Acre.


Veio de Rio Branco esta pérola que é Los Porongas. Tocando juntos desde 2003, passaram por festivais universitários e gravaram seu primeiro álbum, "Los Porongas", em 2007 com produção de Philippe Seabra (Plebe Rude), que foi colocado pela Rolling Stone entre os melhores álbuns do ano.

Desde este primeiro disco o cuidado com a harmonização, com a melodia e com a poética dão tom do que se poderia esperar do grupo. Sim, são canções de amor que se ouve nesse disco, como nos posteriores, mas são bem feitas em cada detalhe, sempre fugindo do comum, do simples , principalmente, do piegas. É Folk porque se pode tocar em um violão qualquer em qualquer canto e porque fala do amor poeticamente. É Rock porque cheira a pretensão popular e porque quer fazer parte. É Psicodélico porque transcende e porque nos leva junto numa viagem sem volta (ouviu, não tem como desouvir).

E veio o segundo trabalho. E voltaram o capricho, a poesia e a viagem. Tudo ainda estava lá em "O Segundo Depois do Silêncio" (2011), mas com mais calma e suavidade, aparentando menos urgência e vontade de fazer parte (menos atitude Rock). Soava mais íntimo e com mais ênfase no texto das canções. E era um trabalho também de requinte para os ouvidos do brasileiro que ainda busca bom som e bom Rock brasuca.

Mas o "Infinito Agora" (2015), de certa forma, sintetizou o bom de cada um dos dois anteriores. O peso e a velocidade do primeiro também não aparecem neste terceiro disco, mas Diogo Soares (voz), Carlos Gadelha (guitarra), Márcio Magrão (baixo) e Jorge Anzol (bateria), os caras do grupo, deram também importância especial à parte musical das canções, mais até do que deram no primeiro; e as letras ainda continuam com a mesma leveza, profundidade e viagens imagéticas, até mais do que no segundo disco; incluindo um citação de um poema do concretista Haroldo de Campos numa das canções, "Morrenasce".

O amor e o intimismo também permanecem, mas é cantado e declamado de modo tão sutil e leve que não cansa nem deprime. O tema é tratado de forma que a alegria e a tristeza, o particular e o social, o bom e o ruim (tudo que faz parte real de qualquer relacionamento concreto) se misturam tão bem que o que se sente é tranquilidade e vontade de sentir ao ouvir as canções. Não há nelas sofrimento nem euforia, só leveza e tranquilidade, como se amar (e desamar) fosse tão comum como levantar e andar, como chegar e se sentar (e por ventura não o será mesmo?).

Aliás, do que as canções de amor dos anos 1980, felizmente, deixou pra trás e não faz falta alguma são o sofrimento e a euforia (ou ao a casualidade e o desapego), modos de falar de amor que acabaram por ficar a cargo dos sertanejos da vida.

O que mais me agrada na nova música pop do Brasil é esse modo de encarar tudo com naturalidade e, ainda assim, projetar sentimento em tudo. Delicadeza de arte pura.

Vale muito a pena ouvir.

Vai lá, e boa viagem!


REFERÊNCIAS

Los Porongas



domingo, 4 de setembro de 2016

CONVOQUE SEU BUDA

Convoque Seu Buda


"O clima tá tenso"

Em 2016 a gente tem mesmo é que convocar, cada um, o seu Buda; parece que é a única saída pra tanto retrocesso e tanta sensação de falta de movimento, e "Convoque Seu Buda" é melhor trilha pra se encontrar no meio da total confusão em que se é obrigado a viver sem saber direito por quê.

Terceiro álbum de estúdio de Kleber Cavalcante Gomes, nascido na Grande São Paulo em setembro de 1975, é diferente dos anteriores na forma e no tratamento, porém o conteúdo, contundente, continua sendo sobre as dificuldades enfrentadas pelo povo pobre da periferia de São Paulo, que não deve ser lá muito diferente daqueles de outras capitais.

Vindo do movimento Hip Hop da Capital do Estado, ainda faz Rap, ainda se diz rapper, mas com alguma diferença e muito mais brasilidade; menos pesado, mas não menos direto, que os primeiros discos, "Convoque Seu Buda" tem uma sonoridade, e vocalização, mais suave e suingada, com influências do Raggae, Samba, Soul, Repente e muito mais.

Desde "Nó na Orelha", disco anterior, Criolo já deixava sua criatividade flutuar sobre a lama da mesmice do Hip Hop ao introduzir instrumentos da música pop na construção dos arranjos das canções; com baixo, guitarra, metais e bateria, o Rap de Criolo deu um salto quântico pra fora do Grajaú em direção às Capitais do Brasil e do exterior.

O CD, que desde a capa mostra a riqueza, e aparente falta de nexo, de informações a que se propõe a dar o compositor a quem sem atreva a tentar decifrá-lo. Porém não é só pra quem pode, e sim pra quem sabe, pois foi disponibilizado, como o anterior, em muitos meios de comunicação pra quem quisesse acessar e baixar; tê-lo foi fácil, dominá-lo é que foi o negócio. Isso por que o Criolo continua não facilitando, do mesmo modo que ninguém facilita nada pra quem vem de baixo; as letras são carregadas de informações argumentativas e imagéticas, e neste disco a sonoridade vai no mesmo rumo; detalhes, detalhes e detalhes a aprimorar-lhe o prumo.


Como não devia deixar de ser, a primeira canção do CD é a que traz também o nome do álbum, "Convoque Seu Buda". Inicia, inteligentemente, com sons de passarinhos cantando (bucolismo) seguindo passos fortes e secos de alguém que corre (fim da calmaria) e finalizando com um grito de guerreiro oriental das artes marcais e o som de uma espada entrando a ação; só então é que a canção realmente começa, com batida forte, seca e lenta, e riffs de pianos elétricos em dissonância dando o tom e o andamento pro vocal que anuncia: "Convoque seu buda / O clima tá tenso", e continua argumentando com imagens que remetem à violência das ruas. A canção parece se referir a tentativa de expulsão dos moradores de rua do Centro de São Paulo pra possibilitar a exploração e especulação imobiliária, o que, segundo o eu-lírico, poderia acabar em tragédia, já que o problema não seria resolvido ao se tirar de lá os abandonados do sistema: estes teriam que ocupar outro lugar.

O refrão volta ao tema espiritualidade, como salvação, ao citar:

"Nin Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu jitsu / Shiva, Ganesh, Zé Pilin dai equilíbrio / Ao trabalhador que corre atrás do pão / É humilhação demais que não cabe nesse refrão"
 (Criolo - Convoque seu Buda - Oloko Records; São Paulo, 2014)


Na verdade, o refrão mistura nos mesmos versos: violência (lutas marciais) e religião (santos e deuses), únicos protetores de quem se vê obrigado a lutar e resistir ao Estado.

Esta é uma das habilidades de composição de Criolo, unir objetos paradoxais o antagônicos aparentemente sem nexo, aprimorado e levado até o limite neste CD.


Na faixa dois, "Esquiva da Esgrima", o assunto é o mesmo: quem pode mais contra quem tem que seguir obedecendo, mas de um modo mais geral, não só contra aquele que está abandonado nas ruas do centro, mas contra todos que, por falta de alternativa, têm que seguir segurando o pouco que conseguem da riqueza do sistema e sem se importar com aqueles que nem isso podem ter, e não por que não se esforçaram, mas simplesmente por que não cabem todos. 

O refrão da música fala do que se perde ao ter que sobreviver no mundo do capital entre os que escolhem o crime e a violência pra também sobreviver:

"Hoje não tem boca pra se beijar 
Não tem alma pra se lavar 
Não tem vida pra se viver 
Mas tem dinheiro pra se contar 
De terno e gravata teu pai agradar 
Levar tua filha pro mundo perder 
É o céu da boca do inferno esperando você 
É o céu da boca do inferno esperando"
  (Criolo - Convoque seu Buda - Oloko Records; São Paulo, 2014)

Ou seja, ao entrar no mundo cão (do trabalho ou do crime) o sujeito se submete, pra ter o vil metal, a não ter humanidade.

Outra característica importante nas composições de Criolo é uso de trechos melodiosos cantados com voz aveludada e tranquila. Nos primeiros CDs, isso era feito em alguns trechos de cada canção, ou em canção inteira, "Amor em SP" (exceção à regra); mas neste o compositor abusou do recurso na maioria dos refrões, o que se mostrou ser uma bola muito dentro, pois, além de enfatizar com excelência a conclusão do eu-lírico, também funciona como meio de popularizar a canção, coisa que não deve ser menosprezada, já que o ideal de todo artista é ser reconhecido, sobretudo daquele que sente ter algo importante  a dizer.


Mas a parada genial do CD, no que diz respeito à letra, é faixa seguinte, "Cartão de Visita", em que o compositor lista produtos de requinte muito desejados por quem tem o poder aquisitivo compatível com tal consumo; porém, enquanto vai listando, vai também dando sermão em quem sente prazer com esse tipo de consumo sem se importar com o "indigente" que pede na rua o mínimo pra continuar vivo.

No refrão da canção, essa intenção é esclarecida mais diretamente:

"Acha que tá mamão, tá bom, tá uma festa
Menino no farol cê humilha e detesta
Acha que tá bom, né não, nem te afeta
Parcela no cartão essa gente indigesta
(Nem tudo que brilha é relíquia, nem joia)"
  (Criolo - Convoque seu Buda - Oloko Records; São Paulo, 2014)

A genialidade consiste em, com a ajuda de Tulipa Ruiz e Mano Brown, dar a entender que ele, o Criolo, também faz parte deste produto a ser consumido, pois, antes totalmente desconhecido, agora anda também na boca e nos ouvidos dos consumidores das classes mais altas, ávidos por novidades, de requinte; assim como ele também agora passa  a frequentar a mais "fina estirpe" com seu "Convoque Seu Buda" no bolso, CD de "Elegância no trato" como "Cartão de Visita" de quem "trabalha no buffet".

Outro indicativo de ser uma canção sobre a condição também do próprio compositor é a citação de uma entrevista a Lázaro Ramos onde Criolo tentava explicar sua ideia a respeito da falta de bom senso em classificar as pessoas em classes como fossem tipos de leite (A, B, C), fato que virou piada na internet: "A alma flutua, leite a criança quer beber / Lázaro, alguém nos ajude a entender". Quer dizer, o próprio Criolo também faria parte da "Classe C" emergente, devendo também tomar cuidado pra não cometer os mesmos erros da elite: achar que tá bom mesmo com muitos ainda na pior.


"Casa de papelão" usa da anáfora "olhos nos olhos" pra descrever um morador de rua que tem como amigos nada além de um cão e de um cachimbo. Parece mais uma vez falar do caso dos indigentes do centro de São Paulo que foram realocados para que pudesse se concretizar ali a especulação imobiliária.

O mais interessante é que a canção também pode ser entendida como um diálogo intertextual com pelo menos duas canções de Chico Buarque feitas na época da ditadura como meio de burlar a censura: "Olhos nos Olhos" e "Deus Lhe Pague"; "Olhos nos Olhos", obviamente por causa da anáfora usada e "Deus lhe Pague" por causa do andamento, do tom de quem segura algo que cresce e por causa do instrumento usado no arranjo principal (flugelhorn), inclusive com algumas frases que lembram muito aquelas gravadas no disco "Construção" de 1971.

Outro indicativo de intertextualidade é que os versos de Criolo remetem a um futuro arrependimento daqueles que ocupam agora, com violência, o as ruas e prédios usados pelos que não têm onde ficar, como se algum ato de vingança pudesse vir destes no futuro; e o tom vingativo também é muito claro nas canções aqui citadas de Chico Buarque.

Esse, aliás, é o tema mais recorrente nas composições de Criolo, nesse CD ainda mais: a vingança de quem hoje se humilha pra continuar a sobreviver e pra que poucos continuem com seu luxo e prazer.

Também é interessante que o compositor, ao cantar a letra, o tenha feito de modo que parecesse mais tranquilo e suave, como em "Cartão de Visita", na música completa, e não só no refrão. O que expressa calma e certeza absoluta no que é dito, além de tornar o enunciado mais direto e palatável. Mais uma vez lembro que ser palatável, pra um artista que sente ter algo a dizer, não significa ceder à imposição da mídia, e sim alcançar maior número de ouvintes: quando se fala pra um gueto, se usa a linguagem do gueto; quando é preciso, e possível, falar pra mais gente, se usa a linguagem da maioria.


A ironia escrachada (já falei o quanto gosto de quem a usa bem?)  é dominante em "Fermento Pra Massa", crônica sobre os entraves causados por uma greve de ônibus. A tal greve teria atrapalhado coisa tão simples quanto o ato de comer um pão fresco de manhã cedo por que, por causa da cidade parada, o padeiro não teria chegado a tempo no trabalho pra fazer os pães pra comunidade.

O ponto de vista (que é o ponto em questão) é que faz aqui a ironia, enquanto a maioria reclama do fato de não ter como ir e vir por conta da greve, o eu-lírico se conforma, apesar de não gostar de "tumulto", e diz que não acha "um insulto  manifestação / pra chegar um pão quentinho com todo respeito a cada cidadão", ou seja, mais uma vez, Criolo toca no assunto principal do disco: se não for igual pra todos, de nada vale ter alguma coisa; de quê adiantaria ter pão fresquinho se o motorista do ônibus não tiver condição de ter sua casa com dignidade, assim como o próprio padeiro também deseja?


Mudando um pouco de assunto,  "Pé de Breque" traz todo o clima rasta pra dar sermão naquele que só procura o subúrbio em busca de prazer e de um baseado, mas sem o menor respeito pelo que seu uso representa pra aqueles que o tem como algo sagrado e transcendental. O eu-lírico, no fim da canção, segue repetindo  "Eu sei o que você quer", de um modo que daria medo a qualquer um que não soubesse o que teria daquilo que buscasse, procurou a periferia pra ter prazer, mas não sabe exatamente o que vai encontrar. A partir do título também é possível perceber que este que procura a quebrada por um pouco de prazer barato é também o responsável pelo atraso do lugar e das pessoas que nele vivem.


"Pegue Pra Ela" parece um baião metalinguístico (Criolo, nos CDs anteriores, usava muio a metalinguagem ao se colocar como cantor de Rap nas letras), pois fala de uma nova canção que deve ser levada pra um pessoa específica, que, não embarcando, vai ficar de fora dessa "nave" que leva uma "multidão"; ao mesmo tempo, também faz uma auto crítica ao afirmar que "Toda cultura vira comércio / É o ponto de degradação", isto é, mesmo sabendo que alcançar um público maior é importante, reconhece que é também quando começa a perder sua essência de artista de rua. Nos primeiros CDs, Criolo não se cansava de mostrar o quanto o Rap tinha sido algo fundamental em sua vida: como salvação e como atuação. Nessa nova metalinguagem pode haver um receio de que a essência do rapper se perca no processo industrial, feito ao gosto da geleia geral.


Em "Plano de Vôo ",  junto com Síntese, Criolo volta ao Rap 'de raiz', abusando das imagens misturadas dispostas a dar sentido a algo que, desde o início da canção, o eu-lírico afirma não conseguir explicar; uma colagem de muitos recortes da vida do suburbano da cidade grande, que é feita de recortes muitas vezes antagônicos em uma estranha harmonia. Parece sem nexo e sem sentido, mas só quem pega até quatro ônibus todos os dias pra trabalhar na Grande São Paulo entende o que é conviver e compreender as milhões de informações que invadem aqueles que são obrigados a viver com o que sobra do que o capital produz.


O Rap continua em "Duas de Cinco" cantando de novo a diferença entre quem aprende a viver com  o desprezo e com a violência desde muito cedo e quem vê tudo do conforto do condomínio através da TV e só conhece a realidade dos videogames. Aqui há também uma rápida citação do ato de fazer Rap como salvação dessa miséria: "Pra cada rap escrito / Uma alma que se salva".


"Fio De Prumo (Padê Onã)", que lembra muito um ponto de terreiro de Candomblé, usa da Língua Iorubá pra avisar que se trata de um hino de saudação e de luta. Com muitas imagens metafóricas ,mostra a cidade como o mal a ser evitado e o bem a ser conquistado. Em uma imagem bastante acertada, o autor diz: "A cidade, um cronista", ou seja, a cidade é que constrói suas crônicas, como poderia um cronista falar de outra coisa senão daquilo que a cidade lhe mostra? Como poderia o compositor de Rap de São Paulo falar de outra coisa que não fosse de desigualdade e do descaso vivenciado por todos em qualquer canto da cidade.


Enfim, "Convoque seu buda", que "o clima tá tenso". A cidade que produziu a riqueza e a ordem também produziu o abandonado e o caos, mas quer se livrar deles, por qualquer meio possível que seja rápido e barato, contudo essa solução final vai cobrar seu preço mais tarde, coitado daquele que agora ri, "comédia, vai chorar".



REFERÊNCIA


Criolo