domingo, 25 de dezembro de 2016

DESIRE

* Desire



O pai de todos 

Em 1960, tudo recomeçava na América do Norte: a política (agora de grande Estado), o cinema (agora com épicos americanos), a música (agora com o Rei do Rock), a TV (agora com a família americana), a população (agora geração do baby boom), a economia (agora rica), a guerra (agora fria).

Em 1960, enquanto a Europa dava os primeiros passos depois de se recomporem da Segunda Grande Guerra, enquanto a União Soviética ainda buscava reconhecimento de seus pares do Ocidente, os Estados Unidos queriam se firmar como grande líder, grande pai, grande salvador, grande conservador da paz e da liberdade capitalistas.

No início dos anos 1960, os norte americanos queriam ser globais (orientadores de todos os países), mas sem se perderem enquanto povo e unidade ideal: John Kennedy (presidente de 1961
a 1963) era democrata, de família irlandesa, pacifista por princípio, mas devia proteger o território e a livre escolha do burguês americano; o cinema era caro e para as massas, mas tinha que valorizar a luta e a capacidade do povo do país; a música era de senhores, mas devia representar as aspirações dos jovens livres da América; a TV era pra entreter, mas precisava trazer o pai de família como líder inato; a economia ia bem por causa da guerra vencida, mas tinha que estimular o livre mercado; a população havia crescido muito, mas ainda era de lugarejos; os conflitos existiam, mas urgia serem com inteligência e sem violência visível.

E os norte americanos iam crescendo, enriquecendo, liderando e influenciando ao mesmo tempo que se reconheciam e se firmavam pra si mesmos.

A década anterior, a que produziu o Rock'n'Roll (e sua majestade), a que gerou um crescimento populacional nunca visto antes, havia sido aquela em que as coisas continuavam a acontecer por acontecer; os norte americanos, agora ricos e em paz, ainda não tinham uma cultura própria (mesmo o natal misturava elementos germânicos e ingleses); era preciso saber-se norte americano pra discernir-se do outro e investir em si.

Por isso, na década de 1960, buscavam o melhor em si que pudesse ser maior, e alternativo, ao que era dos europeus, sobretudo ingleses.

E foi também a década em que a arte, principalmente a música (a mais popular delas) foi invadida por legiões de ingleses, que começavam a transformar o Rock americano (mistura bem sucedida de elementos do Cowntry e do Folk dos brancos com o Gospel e o Blues dos negros) em produto intelectual e altamente consumível.

O que se via no cinema eram sagas do Velho Oeste transformadas em grandes épicos, personagens da antiguidade clássica que enfatizavam a luta contra o poder estatal autoritário, fatos cotidianos para reflexão (bem ao gosto europeu) contados de modo cômico e leve para o público dos Estados Unidos.

Na TV, a família ideal de classe média ("Papai sabe tudo") abria espaço para "Route 66", série em que dois protagonistas masculinos se aventuravam pelas estradas do país; sem muitos, objetivos descobriam todo um território e uma imensa população ainda fora dos noticiários e das artes.


BOB DYLAN

Nesse mundo novo, surgiu  Robert Allen Zimmerman que viria a ajudar os Estados Unidos a redescobrirem a sua própria poética, música e paisagem.

Também foi ouvinte do Rockabilly, mas foi o Folk aprendido no Estado de Minnesota que o levou a todos os cantos de seu país e em alguns da Europa.

Neto de imigrantes judeus russos, aos dez anos já escrevia seus primeiros poemas e, mais tarde, sozinho, aprendeu piano e guitarra. Até os dias de hoje insiste em ser e mostrar muitas facetas nas artes: pintando, escrevendo e compondo para cinema.

Na música, como todo bom garoto daquele tempo, começou em um grupo que tocava o novo e empolgante som de Little Richard e outros artistas negros que chacoalhavam o corpo do norte americano na década de 1950.

Contudo, em 1959, abraçou o violão e o Folk e soprou numa gaita a voz da América esquecida. Ao conhecer a música de de Woody Guthrie, epifanicamente, decidiu que trilharia o mesmo caminho artístico.

Nascido seis anos depois do Rei, Elvis Presley, tenho pra mim que, apesar de toda a Música Pop dos anos sessenta ter Elvis como princípio estimulador, Bob Dylan é que seria o real fundador do pensamento amplo e crítico que o Rock adotou depois dele.

Sim, Elvis (por causa de Little Richard e Chuck Berry) fez a massa (corporal) dançar, junto com John Lennon, ‎Brian Wilson, Raul Seixas, Mutantes e tantos outros; mas foi Dylan quem fez a massa (encefálica) pensar, a começar pelos próprios Beatles, que modificaram radicalmente o som e o comportamento depois de um encontro com Bob em Nova Iorque. O mais inusitado nisso tudo é que até Bob Dylan se reinventou mais tarde ao ouvir e ver o que os Beatles e os demais artistas pop faziam depois de assimilar o que ele mesmo havia proposto como conceito; e esta roda evolutiva ainda não parou de girar.

Depois de abandonar a universidade, Dylan foi pra Nova Iorque em 1961 a fim de se dedicar a música. Já, desde esse tempo, não queria se expressar de outro modo que não fosse através do Folk e não gostaria de cantar outra coisa que não fosse crítica social. Tocou em bares da cidade e ganhou notoriedade por causa de uma resenha de  Robert Shelton que exaltava seu estilo, novo e próprio. Logo depois assinou contrato como músico de produção com a Colúmbia, onde, em 1962, conseguiu a chance de gravar seu primeiro disco, "Bob Dylan", com clássicos do Folk, do Blues e do Gospel e com duas de suas composições:  "Song to Woody" e "Talkin' New York". O disco não foi bem de vendas, mas seu produtor, John H. Hammond, e seu amigo de estúdio e palco, Johnny Cash, o defenderam perante a gravadora e o público, o que possibilitou que continuasse a gravar e a fazer shows.

Ao modificar, legalmente, seu nome para Robert Dylan, em 1962, e assinar o gerenciamento de sua carreira com  Albert Grossman, o compositor deu passos largos em direção ao sucesso; a tacada final foi a primeira turnê pelo Reino Unido entre o fim de 1962 e o início de 1963. Essas acertadas ações eram o que faltava para alavancar sua carreira, que iniciaria mesmo a partir do segundo álbum, "The Freewheelin' Bob Dylan" (1963), só com canções próprias e com temas sociais, incluindo "Blowin' in the Wind", mostrada pela primeira na vez na BBC em Londres e que abriu os olhos do público e da crítica pra o que ele fazia: com nada mais que um violão, uma gaita e a própria voz, ousava criticar a sociedade existente em meados dos anos 1960.

A forma era simples, um homem e o que podia carregar, mas o conteúdo (tema, poema e melodia) era tão complexo, que uma única canção era o suficiente pra um longo tempo de reflexão. Com Bob Dylan (ao contrário do que ocorria com Elvis), o famoso 'quero mais dez iguais a essa' não funcionaria, já que, na primeira, o pensamento crítico do ouvinte já pediria um tempo. Com Bob Dylan (ao contrário do que acontecia com os Beatles no princípio), o que funcionaria, caso já existissem gravadoras acostumadas com músicos intelectuais, seria o seguinte: 'mais dessas, só daqui dois ou três anos, por favor!'.

Mas, como acontece com a maioria dos filhos de Abraão, trabalho intelectual e ânsia por sucesso não faltavam ao novo representante da música americana, Bob Dylan; às vezes, chegava a gravar até dois LPs num único ano; os hiatos de dois anos eram bem poucos até os anos 1990, quando os espaços entre um novo trabalho e outro passaram a chegar a até três anos, bem natural para um cinquentão na ativa desde os 20 anos.

Bob Dylan enfrentou as décadas seguintes produzindo e influenciando artistas tão distantes de sua realidade e estética, que seria mesmo difícil notar o quão foi importante pro pensamento na música popular: The Beatles, Eric Clapton, Frank Zappa, Pink Floyd são só alguns deles. Mas enfrentar essas décadas também era seguir sendo influenciado, e estes que o ouviam e o reproduziam também foram os que o modificaram nalguns trechos do caminho. Os tempos seguiram por estradas tão sinuosas que até a fórmula de cavaleiro solitário já não cabia mais em Dylan, também se eletrificou e se fez acompanhar por grupos de músicos, sem os quais já não poderia mais se apresentar. Depois de 1966, seus antigos fãs o abandonaram acusando-o de traidor de seus próprios princípios: voz, violão e verso. Mas o caipira solitário já estava mesmo morto, e seus fiéis fãs morreram junto com ele. Agora nascia o americano internacionalizado acompanhado de seus bons e competentes amigos, seguidos de outra orla de fiéis fãs, maior e mais inteligente.

O tempo  o atropelou tanto, que Dylan, de judeu não praticante, tornou-se evangélico radical, chegando até a gravar dois discos com temática puramente Gospel. Mas, graças a Deus, estes tempos foram poucos, logo essa busca espiritual, tão comum naquela época, cessaria e ele voltaria a ser o mesmo velho e bom judeu não praticante. Hoje o tempo o forçou ao isolamento, somente como rancheiro recluso, consegue se dedicar ao bom som e ao bom pensamento; o mercado fonográfico não é mais para caras como ele ou qualquer outro que tenha feito os anos 1960.




Depois de 'frustrar' seus ardorosos fãs engajados na luta social e política, ao abandonar o formato acústico e essencialmente Folk pra tocar acompanhado de uma banda eletrificada de Rock e Blues em 1965; depois de sobreviver a um grave acidente de moto que o deixou de resguardo por um bom tempo em 1975, Dylan, artista independente por excelência, dá uma guinada tão aguda na carreira que, sendo seguido por gente insana, poderiam ter dito que ele, não aquele de Liverpool, é quem teria morrido e sido substituído por um sósia, o que faria muito mais sentido, considerando o rumo que deu às suas atitudes.

"Desire" foi o primeiro disco de uma série em que se encontraria um autor mais alinhado com as tradições e os bons costumes do que o de qualquer astro do Rock ou do Pop de seu tempo, até mais que o próprio Elvis, que rebolava no palco e adorava um rabo de saia, apesar de cantar caretices.

A primeira faixa é sim um 'grito' contra o sistema legal e a opinião pública norte americanos, é também uma longuíssima narrativa em dísticos rimados  sem métrica (apesar de ser ainda menor que a antiga "Desolation Row" - Highway 61 Revisited; 1965), quase impossível de ser tocada em estações de rádio da época com blocos de cinco ou seis minutos (ainda hoje são assim) ou ser apresentada em programas de televisão com blocos de dez a quinze minutos (mais da metade do tempo só para sua canção). Mesmo assim, "Hurricane" aconteceu, foi ouvida por muita gente acostumada à velha canção de protesto no repertório de Dylan e comprou o disco novo apostando num artista renovado depois do grave acidente. Estes apostaram certo, houve uma renovação, mas se espantaram com o resultado, seu ídolo agora soava como um branco rico de meia idade, preferindo se ater a inovações técnicas e a recursos estéticos do que a ideologias e a reflexões (o que era a mais absoluta verdade).

Este comprador de "Desire", em 1976, encontrou a mesma "Hurricane", ouvida na íntegra algumas vezes nas rádios e na televisão, abrindo seu novo LP, que contava, resumidamente, um trecho da história do boxeador americano, o que deu título à canção, que foi acusado, injustamente, de homicídio dez anos antes (curiosamente o mesmo ano em que os fãs de Dylan também o julgaram traidor de um movimento estético; agora seria novamente julgado por aqueles que ainda o seguiam?). Bob Dylan escreveu a canção depois de ler a biografia de Rubin Carter, o Hurricane, em que ele conta um pouco de sua trajetória, do sucesso a prisão e condenação, e um pouco da vida no presídio, onde viu sua carreira se desfazer. 

Talvez a feitura da canção e sua escolha pra abrir o disco não tenham sido à toa, talvez já previsse um novo julgamento do público cheio de ranço ao ouvir as novas canções e ao saber das novas ideias e atitudes que o cantor poeta passaria a expressar a partir de então: depois deste disco viriam dois de cunho religioso, um inteiro com canções gospel (Dylan havia se convertido ao cristianismo radical e missionário; só voltaria ao judaísmo na década de 1980, e ao Folk de protesto na de 1990; em 1997, com "Modern Times", alcançou o mesmo sucesso em vendas que este "Desire").

Sim, "Desire vendeu muito bem, era Dylan afinal, e abria com "Hurricane", indignação pura.

Mas não é só isso: o disco, apesar de já indicar maneirismo no protesto, era muito bem feito, bem construído, bem acabado, coisa que Bob Dylan nunca mais deixaria de fazer em qualquer um de seus trabalhos, com ou sem sucesso de público. E o disco também tinha parcerias, coisa inédita ao se tratar de Bob Dylan, e também tinha uma canção de amor feita pra o reconciliamento com sua ex esposa. Então, o público comprou: gostou de "Hurricane" e comprou; gostou de "Hurricane" e gostou do resto, que era bom e estava lá, apesar de pequeno burguês.


Depois da primeira narrativa da obra, vinha "Isis": a segunda (um conto alegórico em primeira pessoa). 
A canção começa contando que o eu-lírico teria se casado com a tal "Isis" em 5 de maio. Se a canção for considerada alegórica, então pode-se tomar "Isis" também como uma figura alegórica fundamentada na mitologia egípcia. Isis, para os egípcios, era a deusa da fertilidade e dos necessitados, também auxiliadora dos poderosos; aquela que surgiu do nada. Era irmã de Osiris, a quem trouxe a vida novamente depois de morto e espalhado pelo Nilo por Seth, ela uniu todas as suas partes espalhadas e lhe deu vida novamente. No Antigo Egito, julho era o mês de Isis, quando o Nilo enchia e fertilizava os campos cultiváveis pra próxima semeadura.

De posse dessa informação pode-se fazer a seguinte analogia: o eu-lírico diz ter se casado com Isis no quinto dia de maio (Osiris), mas logo separou-se dela (morte de Osiris). O eu-lírico é levado pra uma viagem com promessas, feitas por um desconhecido, de ouro e riqueza (descida ao mundo dos mortos); porém as promessas feitas se mostraram infundadas, ao menos para o eu-lírico, pois o objeto valioso que o desconhecido buscava era apenas um corpo, para ele, muito valioso, pois podia ser trocado por dinheiro (aqui há outro indicativo de mitologia egípcia: o tal corpo a ser encontrado estava no interior de uma pirâmide, apesar de ser num cenário gelado de tempestade de neve). O tal desconhecido morreu antes de descer ao interior da pirâmide, e o eu-lírico foi sem ele: havia algo a ser encontrado lá. Contudo o túmulo estava vazio, o que o fez sentir-se enganado, então pegou o corpo do que já havia morrido e o jogou no túmulo vazio. E voltou para "Isis", que o aceitou naturalmente depois de saber que a ida (assim como a volta) do amado também fora natural (o ressurgimento de Osiris).

Posto a perspectiva mitológica, pode-se então analisar a perspectiva cotidiana, já que todo mito leva pro campo alegórico um fato cotidiano. O fato cotidiano aqui seria talvez o afastamento (natural, segundo o eu-lírico) de algo por quê se tem amor e o retorno pra este algo (também, natural, segundo o eu-lírico). Este fato cotidiano poderia ser tanto o casamento propriamente dito de Dylan e Sara, sua primeira esposa, então separados, mas tentando reatar o relacionamento, como também algo relacionado há algum fundamento artístico ou religioso do qual teria se afastado o autor. Artístico, porque deixou a simplicidade primeva por um tipo de música mais complexa; religioso, talvez, porque, a partir de então, abandonaria o tema social, se atendo somente ao religioso, bastante presente nos primeiros trabalhos. Enfim, como qualquer texto alegórico, a subjetividade é difícil de definir com assertividade e exatidão; a única possibilidade é a conjectura. A única possível é: morte e renascimento de algo em alguém (ou de alguém em algo).

A terceira faixa, "Mozambique", nasceu de uma brincadeira entre Dylan e Jacques Levy (primeiro parceiro do disco)  em que competiam para saber quem conhecia mais rimas com "-ique", tarefa nada fácil pra quem se sabe poeta, sobre tudo de língua inglesa.

O resultado, apesar de ter começado de uma brincadeira, não ficou mau, mesmo as rimas encontradas não sendo muitas: é uma das letras mais curtas de Bob Dylan. Numa levada levemente dançante, parece um respiro na carreira toda de angústia do compositor encabeçador de causas sociais e políticas. A letra toda é sobre uma ilha em Moçambique, onde se vai pra relaxar, apreciar belezas e ter romances. Parece que Bob Dylan vai abraçando pouco a pouco a alienação burguesa, tão necessária às vezes à sanidade mental.


Depois do descanso paradisíaco, um bom café pra continuar viagem.


"Desire" Parece ter três partes distintas: a abertura com o protesto de "Hurricane", o descanso relax com a lúdica "Mozambique" e o desassossego lamentoso iniciado com "One More Cup Of Coffee"; a partir desta canção o disco toma um rumo nunca ouvido antes em discos ou apresentações de Dylan: o desconsolo e o desconforto são evidentes e enfáticos em cada uma das canções até o fim do disco.  "One More Cup Of Coffee" (em dueto com a cantora country Emmylou Harris), que é uma obra prima no gênero fundo do poço, descreve em segunda pessoa, como um monólogo sobre alguém pra esse mesmo alguém (técnica cancioneira muito eficaz e largamente usada por Dylan), um personagem desprovido de qualquer esperança ou valor social que pede "One more cup of coffee for the road" (Mais um copo de café pra viagem) pra continuar "To the valley below" (Descendo o vale), ou seja, com o andamento arrastado e batidas pesadas, o eu-lírico mostra que sua vida apenas segue, sem nada que a signifique, por isso o único modo de continuar seria depois de um gole de estimulante químico.

"Your Breath is sweet, your eyes are like
Two jewels in the sky
Your back is straight your hair is smooth
On the pillow where you lie
But I don't sense affection
No gratitude or love
Your loyalty is not me but to the stars above"
(Bob Dylan Desire - Columbia Records; NY, 1976)

(Sua respiração é doce seus olhos são como / duas joias no céu / Sua postura é ereta, seu cabelo é macio / no travesseiro onde você repousa, / Mas eu não sinto afeição / nem gratidão ou amor. / Sua lealdade não é para mim, mas para as estrelas do céu)

(...)

"Your sister sees the future
Like your momma and yourself
You've never learned to read or write
There's no books upon your shelf
And your pleasure know no limits
Your voice is like a meadow larks
But your heart is like an ocean
Mysterious and dark."
 (Bob Dylan Desire - Columbia Records; NY, 1976)

(Seu pai é um foragido / e um traficante / Ele te ensinou como selecionar  e escolher / e atravessar uma faca / Ele supervisiona seu reino / E assim nenhum estranho se intromete / Sua voz treme e ele reclama / por mais um prato de comida)

Quando você se sentir também descendo o vale, não se esqueça  de pedir um café pra seguir caminho, mas não sem antes colocar "One More Cup Of Coffee" no play em modo repeat.


E segue "Oh, Sister", também com a voz de Emmylou Harris. A canção traz o desconsolo na voz do eu-lírico, que lamenta e pede compaixão à suposta irmã. Parece o primeiro retorno do compositor ao tema cristão da irmandade, onde, por serem iguais sob um Deus pai, hão que se ajudarem pra que não sofram. A impressão que se tem é que Dylan passa da luta por direitos de igualdades para o convencimento espiritual, que é um modo diferente de tentar ter o mesmo: justiça social.

"Oh, sister, when I come to lie in your arms
You should not treat me like a stranger
Our Father would not like the way that you act
And you must realize the dange"
 (Bob Dylan Desire - Columbia Records; NY, 1976)

(Oh, irmã quando eu venho deitar em seus braços / Você não deveria me tratar como um estranho / Nosso Pai, não gosta de como você age / E você tem que perceber o perigo)
É a primeira estrofe da canção sem refrão.


"Joey", segundo o próprio compositor, é uma homenagem ao gangster Joey Gallo, morto em 1972, aos 43 anos. Para ele, Gallo , que se recusava a matar inocentes, era pela causa dos negros e protetor da família: quando soube de um ato de violência contra seu irmão mais velho, quis vingá-lo (por isso foi preso), depois protegeu mulher e filhos quando adversários o procuravam (por isso acabou morto), por esses atos, segundo Dylan, devia ser visto como um legítimo homem de princípios.

Assim como "Hurricane", é uma letra longuíssima (11 minutos de canção) onde é narrado o fato que levou Joey a prisão e como foi morto depois de proteger a família. É mais uma vez Bob Dylan se compadecendo de um homem injustiçado: preso por defender seu irmão e morto porque, ao proteger a família, não teve tempo de escapar ou revidar. Mas, ao contrário de "Hurricane", aqui Joey Gallo era sim um gangster conhecido mesmo antes de ser preso ou assassinado; portanto, um fora da lei; contudo como não ser um fora da lei num país que criminaliza sua cultura (o álcool), menospreza sua religião (o catolicismo) e o tem por degenerado por trazer a sexualidade como algo natural?

Mas a canção mais poética do disco, talvez de toda obra de Dylan, é a seguinte: "Romance In Durango". Também contando de personagens perseguidos, narra a história de eu-lírico (não identificado), em primeira pessoa, e "Madalena", que tentam chegar a "Durango". Entre muitas dificuldades, o eu-lirico vai enchendo "Madalena" de esperanças (consequentemente, também o ouvinte) ao imaginar e contar o que lhes esperaria em "Durango": riqueza, festa, descanso e a proteção de Deus. Num Fandango (ritmo de países de colonização espanhola, México inclusive) bem lento, Bob Dylan mostra uma força poética (com imagética alegórica, métrica e rimas) incrível e uma narrativa digna de qualquer grande cineasta. A história de um casal que atravessa o deserto mexicano (depois de serem acusados injustamente de um crime) em busca de um paraíso na Terra; é a história de todos nós. A tragédia no desfecho (tem-se a impressão de que ao menos o eu-lírico teria sido ferido de morte por uma bala de seus perseguidores) colabora com a genialidade do texto: com tom lamentoso, conta suas esperanças; mesmo atingido, incentiva sua companheira a agir rápido e atirar nos perseguidores: ainda a esperança viva. E, mesmo sabendo que talvez não alcancemos qualquer paraíso, sem a esperança (sem a utopia) não é possível atravessar qualquer deserto de problemas quase insolucionáveis.

Apesar da levada um pouco mais agitada de "Romance in Durango", ainda assim, se trata de uma canção triste, se não por se tratar de um Fandango muito lento, pelo menos por causa da trama e pelo tom da narrativa. A faixa seguinte, "Black Diamond Bay", à primeira audição, parece que vai mudar um pouco o rumo dado ao LP até aqui por causa da levada, Cowntry, rápida e dançante, mas não. A letra narra um fato ainda mais trágico do que a de "Romance in Durango". Com cenas recortadas, mais parecendo a descrição de um sonho (anos depois, os vídeo clipes também usariam esses recortes como forma de simular velocidade de acontecimentos), e imagens absurdas, a canção mostra cinco personagens em um hotel de uma fictícia ilha chamada "Black Diamond Bay". Nessa ilha, uma mulher deprimida cruza um homem grego prestes a se enforcar em um dos quartos, enquanto um soldado e um anão disputam um anel em um jogo de cartas no andar de baixo, onde também está o recepcionista do hotel. Até aqui a letra já nos joga no colo um cenário bastante sinistro, mas ainda piora. O recepcionista, mesmo espantado, dá uma corda ao homem grego, que lhe havia pedido e dito que seria pra matar-se no quarto em que se hospedara. Ao ver a disputa no andar de baixo, a moça resolve voltar e procurar o homem grego, que não abre a porta e acaba se enforcando. Nesse mesmo instante, o vulcão da ilha entra em erupção e mata a todos no lugar. Mas essa tragédia a mais não é o bastante para Dylan: num Gran Finale, o eu-lírico se transforma em alguém que vê a notícia da destruição da ilha pela TV e reclama dizendo que é só mais uma má notícia das tantas veiculadas pelo aparelho. Abre uma cerveja e diz que não há por que se importar ou se preocupar, afinal nunca planejou ir pra tal "Black Diamond Bay". Acho que, depois dessa canção, não há mais o que dizer sobre o homem moderno.

Então, a parte pesada do disco, iniciada com "One More Cup Of Coffee", continua, alentada um pouco pelo andamento dançante, mas ainda é sobre a desesperança.

"So I turned it off and went to grab another beer.
Seems like every time you turn around
There's another hard-luck story that you're gonna hear
And there's really nothin' anyone can say
And I never did plan to go anyway
To Black Diamond Bay."
  (Bob Dylan Desire - Columbia Records; NY, 1976)

(Então eu desliguei e fui pegar outra cerveja. / Parece que toda vez que você se vira / Há uma outra história de pouca sorte que você vai ouvir / E não há nada realmente que alguém possa dizer / E eu nunca fiz planos de ir, de qualquer maneira, / Para a Baía do Diamante Negro.)

Depois dos desastres alegóricos, pra terminar seu discurso, Bob Dylan resolve revelar o seu em "Sara". Nesta canção se ouve o lamento do autor que tenta entender os porquês de sua amada, "Sara", o ter deixado. Sara Dylan foi a primeira esposa de Bob, de quem estava separado há algum tempo à época da gravação do disco.

O autor vai descrevendo na canção as alegrias vividas pelo casal e pelos filhos, fazendo pausas com um refrão variável em que aparece seu lamento pela separação e os questionamentos a respeito dos motivos, que não sabe. O desfecho é também trágico, mostra a praia linda, relatada no no início, agora maltratada pelo tempo; é também esperançoso, não há indicação de uma impossibilidade de retorno do casal.

Depois de pronta e gravada, Dylan quis que sua musa inspiradora fosse a primeira a ouvir a canção (além daqueles que participaram da composição e gravação). Ao final da audição, ambos se deram um longo abraço que parecia a reconciliação realizada, mas o clima mágico não durou muito: em pouco tempo estariam separados novamente em definitivo.


Agora a reflexão geral a respeito do disco:

1 - Temática = as canções giram em torno do tema da condenação injusta, consequente perseguição e final trágico (o protagonista se dá mal no fim), com exceção de "Isis", "Mozambique" e, em termos, "Sara".

2 - Andamento = o disco todo (incomum na carreira de Dylan até então) traz canções muito lentas e em tom de lamento, com exceção de "Mozambique", "Hurricane" e "Black Diamond Bay" (as duas últimas com narrativas trágicas e desesperançosas).

3 - Contexto = quando da gravação do disco, Dylan havia passado pelo rejeição do público por os 'ter traído' ao começar a gravar e se apresentar com uma banda; Dylan havia sobrevivido a um acidente grave de moto e, por isso, passou muito tempo em resguardo; Dylan havia passado por uma separação traumática de sua esposa, da qual não entendia o motivo.

4 - Rumo tomado a partir de então = depois de "Desire", Bob Dylan gravaria dois discos ao vivo e um LP de estúdio antes de abraçar a cristianismo radical e gravar dois discos enfatizando a temática religiosa e um terceiro em que passaria a tocar menos no assunto. Só depois é que voltaria a se aproximar novamente do judaísmo e da temática social.

A partir disso pode-se dizer que "Desire" é um disco fúnebre, em que Dylan parece querer enterrar a si mesmo, ou àquilo que nele parece não ter mais vida: compromisso social, compromisso com o alternativo e compromisso conjugal. "Desire" era o canto fúnebre para o Dylan contestador e pai de família.

Mas, ainda bem, que a fase messiânica passou logo!


Em resumo, Bob Dylan influenciou uma larga gama de compositores de Música Pop ao mostrar que é muito possível ser popular e intelectual ao mesmo tempo; Bob Dylan acabou, da mesma forma, influenciado por aqueles que influenciou, tanto que aderiu à guitarra elétrica e ao acompanhamento de uma banda; Bob Dylan, durante toda sua carreira, mostrou que só pode ser fiel, como artista, ao surpreendente (quando a música pop era elétrica, ousou ser somente ele e seu violão; quando esperavam isso dele, se eletrificou; quando o amavam por ser contestador, virou cristão fervoroso; quando viam nele o tradicionalismo, passou a experimentar as novas ondas; quando achavam que ele mostraria um novo caminho para a Música Pop, voltou a gravar Folk). Enfim, Bob Dylan nunca, na verdade, deixou de ser contestador e alternativo, cada rumo tomado era na verdade uma contestação tão radical que feria até mesmo os caminhos por ele mesmo trilhados e aqueles que o haviam amado por tais caminhos; quem amou a mudança nele o amou sempre.



REFERÊNCIAS




BOB DYLAN




DESIRE




CRÍTICA (Desire)








* É muito difícil achar material em vídeo da obra de Bob Dylan disponível gratuitamente, e não é diferente com as canções de "Desire", por isso, nesta resenha, só foi possível colocar link para as canções separadamente em cada faixa, sendo  uma cover, "Black Diamond Bay", e as demais de sites variados. 






sábado, 10 de dezembro de 2016

ALUGA-SE




1980

O ano era 1980. Depois do grande sucesso de "Há Dez Mil Anos Atrás" (1976), dos razoavelmente populares "Raul Rock Seixas" e "O Dia Em Que a Terra Parou" (ambos de 1977), aconteceram  "Mata Virgem" e "Por Quem os Sinos Dobram" em 78 e 79, com pouquíssima repercussão na crítica e no público; eram os primeiros com ausência total do antigo parceiro Paulo Coelho e aqueles em que Raul mais se distancia do bom e velho Rock'n'Roll para produzir discos mais conceituais e com letras mais profundas e elaboradas. Esse Raul Seixas mais "cabeça" do que antes não agradou tanto; e a WEA, gravadora e distribuidora da obra de Raul, decidiu cancelar o contrato com o Maluco Beleza. Assim, Raul foi bater na porta da antiga gravadora em que trabalhava como produtor musical, e que não lhe abrira espaço pra trabalhar como compositor e interprete, a CBS, pra lhe propor abertura de contrato. Conseguiu. No mesmo ano seria lançado "Abre-te Sésamo" contendo "Aluga-se" e "Rock das Aranhas", canções que caíram no gosto do público, e impulsionaram a venda do LP, mas que tiveram execução proibida pela censura: a primeira, por ser explícita quanto à opinião do compositor sobre o política econômica vigente; a segunda, por ser explicita quanto ao que o mesmo pensava a respeito da homossexualidade feminina (com detalhes metafóricos bem fáceis de entender).

O ano era 1980 e Reagan era eleito nos EUA, dando início ao endurecimento da Guerra Fria, da Guerra Contra o Narcotráfico, da Guerra Contra os Movimentos Populares e da Guerra pela Moral e pelos Bons Costumes. Reagan, com apoio da CIA, traria às vistas a infiltração e a influência do governo estadunidense em todos os países da América Latina, enviando tropas, inclusive, para grande parte deles, além de ajuda financeira e especializada em repressão para outros, como o Brasil por exemplo.

O ano era 1980. John Lennon foi assassinado. Vinícius de Moraes morreu dum mal súbito. O enlatado "Bozo" estreou no Brasil, programa que exibiria, 3 ou 4 anos depois, a versão brasileira para "El Chavo del Ocho", programa cancelado no México nesse mesmo 1980.

Em 1980, o Papa João Paulo II desembarca no Brasil para sua primeira visita ao país.

Em 1980, são fundados: PDS, PMDB e PT, principais partidos políticos no Brasil até meados dos anos 1990.

Era 1980 e Raul Seixas já havia sacado o que a elite pequeno burguesa do país pretendia como projeto econômico e social para o Estado brasileiro: "alugar o Brasil".


"Aluga-se"

A canção começa com batida forte e tribal na bateria do bom e velho Rock'n'Roll chamando a  riff e a introdução da guitarra, com overdrive bem distorcido; é pra deixar qualquer ouvido muito atento, pra levantar do chão aquele que por ventura ainda esteja deitado sobre sua falta de sentido e perspectiva. Estando o ouvinte já atento, o eu-lírico, genialmente, passa a afirmar que tem uma "solução" pros males do "povo":

"A solução pro nosso povo
Eu vou dá"
(Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)

E continua mostrando as vantagens antes de citar a tal "solução" salvadora:

"Negócio bom assim
Ninguém nunca viu
Tá tudo pronto aqui
É só vim pegar"
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)


Só então, no último verso da primeira estrofe, é que se ouve aquilo que se deve fazer pra sair da pior:

"A solução é alugar o Brasil!..."
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)

Depois disso, entra o refrão dizendo mais das vantagens e facilidades de "alugar o Brasil" "pros gringo entrar":

"Nós não vamo paga nada
Nós não vamo paga nada
É tudo free!
Tá na hora agora é free
Vamo embora
Dá lugar pros gringo entrar
Esse imóvel tá pra alugar"
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)


Ou seja, ainda se poderá viver neste país exuberante e farto de delícias deixando os estrangeiros ficarem também por aqui a pagarem um quinhão por isso. O que é hoje bem verdade se colocarmos o discurso desse eu-lírico na voz desses que estão aqui a "vender" bem barato o povo, o minério, o chão e a paisagem do Brasil. Mas, veja bem, este "negócio bom" é só vantajoso pra elite que se põe a "representar" o território e a nação, sobrando, para o povo, trabalhar muito, até perder a vitalidade, e receber muito pouco em troca.

Na segunda estrofe, a argumentação sobre as vantagens continua ao citar as belezas naturais, que seriam ótimos atrativos para o estrangeiro disposto a gastar seus preciosos dólares por isso:

"Os estrangeiros
Eu sei que eles vão gostar
Tem o Atlântico
Tem vista pro mar
A Amazônia
É o jardim do quintal
E o dólar deles
Paga o nosso mingau..."
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)

E segue a repetição do refrão até o fim da música pra enfatizar as maravilhas de se fazer nada e se ter tudo ainda assim; mole , mole, vivendo de dividendos e lucros no Brasil. Eis o projeto de Estado que vamos vendo realizado no país por quem tacha de vagabundos artistas, trabalhadores rurais, aposentados, professores, líderes de causas sociais, e tantos outros que lutam por igualdade e justiça.

Há mais de trinta anos, Raul Seixas já percebera o que hoje vem se concretizando no Brasil: uma elite egoísta e burra fazendo o possível pra se dar bem às custas de um povo sofrido e sem representação e de um território imenso e desprotegido. Tudo isso foi cantado por ele na forma mais bufa e irônica que alguém pode conceber, especialidade de Raul.

Será que o fim dessa canção será mesmo trágica?


REFERÊNCIA


1980



"Abre-te Sésamo"



"Aluga-se"