domingo, 26 de junho de 2016

15 BIG ONES


15 BIG ONES
Mas no mundo, e na música, não há somente os que fazem, e os que ouvem, música pra satisfazer sua lógica e suas teorias; há também aqueles que preferem cantar e tocar, e dançar e cantar, por simples prazer, sem que precise ser ou parecer inteligente, apenas agradável aos ouvidos.

Nessa “vibe” (quase ao pé da letra) surgiram os Beach Boys bem no início dos anos 1960. Wilson, seus irmãos (Carl Dennis), seu primo (Mike Love) e um amigo em comum (Al Jardine), quase todos da Califórnia (Al era de Ohio), se juntaram pra tentar o sucesso como músicos.

Tudo começou quando Al, colega de turma de Brian Wilson, passou convidar este e o irmão Carl para praticarem música (instrumentos e vozes), quase sem pretensões maiores, e Brian, ouvindo as histórias do irmão do meio (Dennis), que também tocava bateria, mas com o primo de ambos (Mike Love), que tocava e cantava, sobre surf, carros e garotas, compôs as primeiras canções do que viria ser “The Beach Boys”.

Os rapazes da praia, muito influenciados por Chuck Berry, nem tinham muito o que escolher, o que tocariam e comporiam seria rock, mas no caso deles, com um toque do sul da Califórnia (caipira) e uma pegada de displicência, natural aos moços e às moças que não pretendem muito além do que já têm: praia, sol e prazer.

Há quem diga que os Beach Boys não passavam de garotos mimados e alienados, porém tudo questão de contexto, sempre.

As “Good Vibrations”, primeiras da história, emanadas pela banda tem seu lugar ao sol das praias da Califórnia de 1960 por que, nesse tempo, é o que todos ali buscavam e tinham, mesmo os que vinham de outras partes do país. No início dos anos 1960, as conturbações todas aconteciam mesmo era na Costa Leste; L.A. ainda não havia visto suas primeira guerras urbanas envolvendo latinos, negros e brancos. Na Costa Oeste, havia somente fazendas, comércio e lindas praias enormes e vazias; como é que esses garotos iriam cantar outra coisa que não fosse isso? O que os garotos e garotas de lá iriam querer ouvir se não fosse isso?

Tudo bem... - mas há questões existenciais inerentes a qualquer um em qualquer lugar - poderá o senhor ou a senhor pontuar... - e conflitos pessoais em qualquer lar - ... - além de cenas dramáticas de romances com qualquer casal -...

Sim, é a mais pura verdade; e isso acontecia, e gravemente com os irmãos Wilson: isso por que Brian, o mais velho de três, apanhava do pai desde pequeno e sofria de esquizofrenia desde o nascimento (diagnosticado muito depois, já fazendo sucesso com o grupo). A família não era possuidora de recursos e os meninos passavam o dia na praia sem muito o que fazer (quando não estavam na escola). Isso já daria roteiro para muitos dramas psicológicos e sociais para os Wilsons cantarem, “mas que nada”... preferiram divertir a todos (inclusive a eles mesmos), a começar pela principal vítima de violência social e familiar, Brian Wilson.

No princípio, eram os "Beach Boys" uma simples e displicente banda de Surf Music mesmo, afim de falarem em carrões, mulheres e praia, mas isso foi mudando com o tempo; principal motivo: não foram aceitos por intelectuais, não eram respeitados como músicos (apesar de venderem muito) e não foram bem recebidos no Reino Unido. Pra piorar, em 1964, os “Beatles” (e outras bandas inglesas) “invadiram os EUA” com harmonias e arranjos bem construídos, o que conquistou a América de um só golpe; o leste, que torcia bem o nariz para os nativos surfistas, abriu bem os braços para os refinados europeus, que, por sua vez, haviam desprezados os pobres moços do Oeste: “surfistas”, “caipiras burgueses” e "alienados".

Assim, liderados pela genialidade de Brian Wilson, “The Beach Boys” viram-se obrigados a amadurecer: o som e os temas; a partir de 1965, os garotos passaram a incluir nas canções novos instrumentos e novas estruturas de arranjo melódico e harmônico, fazendo com que ganhassem o respeito da crítica e até dos moços ingleses.

Nesse ano, Brian Wilson diz publicamente que consome Cannabis regularmente e que percebe seus efeitos sobre as novas composições e experimentações musicais; diz que, depois de ouvir “Ruber Soul” (The Beatles) pretende compor o melhor disco da história e começa a “fabricar” “Pet Sounds”, disco icônico do pop mundial.

No ano seguinte, em 1966, os californianos lançam o tão esperado disco que desbancaria os bons moços de Liverpool, e Brian tem sua doença (esquizofrenia) acentuada por causa do exagero no uso das drogas e do álcool (além de ser inadequadamente tratado). Porém o disco é um sucesso, fez história no Rock agradando críticos e influenciando até outros músicos, Beatles inclusive, que, ouvindo o LP, se preparam para compor e gravar o famoso “Sgt. Peper’s”, lançado no ano seguinte.

Quando ouviu este álbum dos rivais britânicos, Brian, mais uma vez, quis fazer ainda melhor e, durante a turnê de “Pet Sounds”, compôs todas as partes para o próximo trabalho “Smile”, mas, devido ao vício e à doença agravada, não consegui depois juntar coerentemente essas partes, o que atrasou muito o lançamento do disco, que acabou saindo sem tudo o que o líder da banda havia imaginado e tanto alardeado. O disco não fez sucesso com a crítica, por que não era tudo o que o grupo prometia, e não fez sucesso com o público, por que estava órfão da música despretensiosa de praia. Contudo, é um é uma obra memorável, mesmo sem todos os requintes planejados, e esquecidos, por Brian, o disco não deixa nada a desejar pra onda psicodélica daquele tempo.

Após esse “fracasso”, Brian deixa o grupo, que produziu ótimos discos depois, mesmo sem a genialidade do ex-líder, e volta somente em 1976, aquele em que tudo começou, e, pra celebrar, lança um novo trabalho mesclando covers e novas composições: “15 Big Ones”.

Desde 67 “The Beach Boys” não alcançava o mesmo sucesso popular que tivera antes da ‘invasão britânica’. Porém, 1974 a gravadora do grupo, Capitol Records, sem consultar empresário ou banda, lançou um álbum duplo contendo os principais sucessos dos “Beach Boys” de 61 a 66, “Endeless Summer” foi o número 1 na Billboard. A partir de então, todo show dos garotos deveria ter ao menos uma canção desse disco a fim de agradar os que tomaram conhecimento da existência do Surf Rock antes de “Pet Sounds”.

No ano seguinte, as canções antigas foram tomando gradualmente um espaço maior nas apresentações substituindo os hits mais recentes, até se tornarem as únicas nos shows, e os surfistas da Califórnia viam seu sucesso crescer a olhos vistos: shows lotados, público entusiasmado e satisfeito, vendas no topo, como no auge em 66. Assim, começaram os planos  para um novo álbum, com Brian na produção novamente; mas o irmão mais velho dos Wilsons tinha uma condição: queria um LP somente de covers, coisa totalmente oposta ao que os irmãos mais novos queriam. Então, decidiu-se que seria um disco duplo: um com covers, outro com inéditas, e começaram as gravações, mas, no final, saiu um álbum simples mesclando covers e inéditas o que acabou por agradar a todos no grupo.

15 Big Ones” foi o maior sucesso de vendas do grupo, não de crítica, os especialistas ainda queriam continuar se deliciando com as composições requintadas a base de psicotrópicos registradas desde “Pet Sounds” até “Holland”, adorados pelos resenhistas e músicos profissionais, mas fracassos em vendas. O disco foi lançado com 15 canções regravadas e inéditas intercaladas, uma para cada ano de existência da banda, e logo ganhou uma turnê, sucesso em cada cidade por que passaram.

O LP, lançado em junho de 1976 pela Brother Records, se assemelha a uma espécie de evolução musical dos “Beach Boys”, como se cada música, que representaria um dos 15 anos da banda, também representasse o espírito dos integrantes e das composições. Abre com "Rock And Roll Music" de Chuck Berry, ídolo adorado por todos do grupo, principalmente por Brian, e com o qual tiveram certa intriga por causa de uma ‘homengem’ não creditada ao cantor quando do lançamento do primeiro álbum, o que custou alguns milhares de dólares aos bolsos dos então novos ricos da música pop americana.

"Rock And Roll Music" é um “good vibration” ao estilo bem conhecido dos velhos adeptos do surf e sua cultura: muito animada, como uma propaganda essencial pra um estilo de vida, com letra fácil e superficial falando de rock, mulheres e bebidas; tudo que os meninos praianos tinham a oferecer nos tempos do Rock ingênuo. A gravação serviu também, além de registrar o espírito daquela juventude, como uma forma de se retratar com o passado mal entendido com o genial Chuck Berry.

E, continuando nas vibrações do bem, "It's OK" (Brian Wilson/Mike Love) traz aquele mesmo clima da música de abertura (sol, estrada e diversão) numa levada bem alegre, mas agora com o toque de genialidade pessoal dos “Beach Boys”; sim, eles se inspiravam em ídolos geniais, mas também o eram, principalmente por composição de arranjos vocais extremamente requintados e e empolgantes, marca registrada do grupo (“Good Vibrations” deles é muito recomendável pra quem quiser conferir isso). Mas a canção que parece, à primeira vista, mais uma das bobagens adolescentes do início dos anos sessenta não pode ser lida exatamente assim, há que se lembrar de se tratar de uma banda de senhores, que muito passaram por essas estradas, que agora retornam ao showbiz por que o publico os redescobriu. Portanto, pode ser lida também como um conselho de quem sabe o que acontece quando o Sol nasce dentro e fora das pessoas: “It’s ok!”, não há o que temer, não há pecado em se divertir ao Sol do verão. Essa canção, aliás tem uma das frases que se tornaram uma grande descoberta pra mim: “Find a ride/In the sun, summertime”, ou seja, encontre, meu caro, sua viagem sob o sol do verão. Isso pra mim quer dizer muita coisa, principalmente vindo de senhores que fizeram sucesso, com sua pitada de tragédias, por acreditarem no que tinham neles; inclusive, sua “bad trip”, que começou quando tentaram superar os caras ingleses na praia deles, foi desastre total em felicidade pessoal trocar o Sol da Califórnia pela umidade holandesa.

Por falar em velho mundo, agora, na terceira faixa do disco, a banda resolve aportar nas praias de Londres. É impossível não reconhecer a sonoridade dos “Beatles” de “Panny Lane” em "Had to Phone Ya", composição de Brian Wilson, Mike Love e Diane Rovell (cunhada de Brian). O piano martelando ao fundo, como o de Lennon, as frases de oboé dando um toque delicado e doce pra canção, a letra que, em vez de festa e garotas, fala da distância encurtada pela existência de um telefone à mão, a forma do poema desconstruído, repleto de variações e até as semi-tonações bem típicas de Sir McCartney, está tudo lá: o registro do choque que foi se deparar com os rivais britânicos nas ondas californianas. Eu, marinheiro de primeira viagem, enquanto era desvirginado pelo disco, pensava ser essa canção uma clara prova de que os tais é que teriam influenciados os caras de Liverpool, pois ainda pensava, antes de pesquisar, se tratar de uma coletânea somente de regravações, porém foi justamente o oposto, o baque foi muito maior pra os “Beach Boys” que para os “Beatles”.

Mas, antes dos ingleses, logo depois do boom do início do rock, toda a América havia sido tomada por uma onda de iguais proporções: as Girls Groups, grupos vocais femininos em que as jovens e belas moças cantavam o romantismo tão desprezado pelos bad boys do rock. Pelo que parece, essa onda também quebrou sobre os “Beach Boys”, tanto que mereceu um lugar entre as faixas de “15 Big Ones”, “Chapel of Love", que ficou conhecida nas vozes das meninas de “The Dixie Cups”, foi composta pelo trio Jeff Barry-Ellie Greenwich-Phil Spector (casal e amigo), que tinha por ofício compor hits de sucesso para os grupos de garotas. A letra da canção, assim como as demais no mesmo estilo, é pura singeleza e inocência, cabe feito uma luva nos ouvidos de moças que sonham com seu príncipe encantado. O gênero, à época, era o único rival dos ousados roqueiros dos carrões, bebidas e garotas, maniqueismo de “Grease” acontecendo de verdade; foi assim até a chegada da psicodelia europeia que tomou a todos de assalto.

Continuando no embalo da simplicidade, Mike Love, e parte do grupo, compôs e cantou "Everyone's in Love with You" que bem poderia ser cantado por qualquer Girl Group do início da Década de 1960. Mas o amor descrito na letra dessa canção não exatamente entre um casal, é mais sobre o fato de um grupo como os “Beach Boys”, enamorado, encantar e fazer enamorar-se milhares de ouvintes; eis o amor impossível e platônico descrito para quem vive do palco: 

“Everyone's in love with you/But you can't fall in love with anyone/Still everyone's in love with you/Though you can't fall in love with only one”
(THE BEACH BOYS - 15 Big Ones - Brother Records;
EUA,  junho de 1976)

Aqui os surfistas declaram seu amor em poder despertar o amor no público, que também os ama por ver neles tanto amor, mas cada qual com o seu em especial, é claro!

Porém, antes de seguir viagem longa, é preciso reabastecer, no caso de uma banda Surf Rock, só poderia ser com garotas e curtição. De volta aos anos sessenta, com a balada de Joe Seneca, “Talk To Me”, todo o eu-lírico feminino aflora, cantando pro seu amor, por favor, pra falar de amor mais uma vez, que tanto lhe agrada; mas o pulo do gato dos californianos aqui foi mudar um pouco a letra original inserindo um trecho de “Tallahassee Lassie” de Freddy Cannon que fala do amor por seu carrão, quer dizer, esse eu-lírico feminino gosta ainda de ouvir sobre o amor aos carrões, que, talvez, fosse um modo de chegar mais rápido até ela. Particularmente, achei uma sacada e tanto essa: depois de tantas idas e vindas, o que ainda querem mesmo é o amor juvenil superficial e arriscado.

Depois de uma breve parada na balada do início do Rock, por que não falar um pouco do que havia antes do próprio Rock? Pois foi o que fizeram em "That Same Song" (Brian Wilson/Mike Love), um Soul Gospel que tem como objetivo contar das raízes sagradas e negras do gênero que caiu no gosto dos brancos burgueses frequentadores de festas. Quem ainda não sabe, através dessa canção, pode ficar sabendo que  a música que mudou a cultura do mundo veio dos louvores de igrejas frequentadas por negros norte americanos do sul do país; também fica sabendo que, no fundo, apesar de toda profanação, ainda continuam cantando a mesma música que os antigos escravos criaram para pedir e agradecer, seja o que for.

De volta à viagem, Brian Wilson, em "TM Song", conta do valor da ‘meditação’ naquela horinha em que tudo parece pressionar demais. Brian foi o primeiro do grupo, e dos primeiros dos EUA admitir uso regular de maconha e de seus efeitos sobre sua música, mais tarde também se declarando usuário de LSD, abusos que lhe valeram um agravamento de sua doença psiquiátrica e sua impossibilidade de atuar na banda como produtor. Porém, como segue a viagem, parece que ele ainda recomendo aquela horinha de desapego, mas sem a facilidase tóxica, dando preferência ao exercício da meditação.

Já que o negócio é diversão, vamos de roda gigante que é conceito geral. "Palisades Park", agora uma inteira gravada por Freddy Cannon se passa num parque de diversões onde os amores, como as viagens, têm que ser rápidos e seguramente arriscados. Essa canção me chamou a atenção desde o princípio por ter muito que me lembrasse as velhas dos “Ramones”, algo como “Little Ramona” talvez, e, pesquisando descobri que os “Ramones” realmente regravaram essa canção, muito mais rápida e menos melódica do que a versão original, mas está lá, em “Brain Drain”, nunca havia ouvido essa versão dos Punks, mas o que "Palisades Parkme lembra mesmo são as primeiras canções dos primeiros discos. Vale a pena conferir e perceber o quanto NY do final dos anos 1970 andava se divertindo com a Califórnia e o Old Rock, num revival da Década de 1950 e 1960.

Ainda na mesma onda do velho e bom Rock básico, alegre e rápido, Al Jardine mostra o quanto se pode fazer com metáforas a partir de uma raiz primária (mulheres/carrões/diversão). Em "Susie Cincinnati" (Al Jardine) - depois da maturidade, artística e pessoal - o eu-lírico faz parte de um grupo (qual seria?...) que, iludido, admira uma certa "Susie" que entende tudo de como dar prazer a quem queira através das ruas noturnas da cidade. Pode-se claramente perceber, através da letra, que antagoniza com a leveza empolgante da melodia e da levada, a total decepção de um grupo com uma mulher que aparentava ser o bem geral, mas que, na verdade, não passava da "number one sinner"; nas entrelinhas pode-se chegar à conclusão de que a decepção viria do fato de "Susie Cincinnati" ser esperta e inteligente, capaz de ter outra vida, mas que  prefere saber da noite e seus caminhos, com a ajuda de um marido fiel e forte e dos filhos, que dormem sozinhos em casa; além disso, outro agravante viria do fato de a 'dona das ruas' não se importar com quem a procurava, tudo que lhe pedissem seria feito, e bem feito, contanto que houvesse um bom pagamento em troca, ou seja, essa "vencedora" dos segredos da noite na cidade é capaz de ajudar a qualquer um que busque alívio, mas só no caso deste também ter algo material que lhe pague a viagem. É também interessante notar aqui uma semelhança incrível da canção com as dos primórdios dos "Beatles", além das variações harmônicas características, também o antagonismo letra/andamento, tendo a primeira discorrendo sobre uma trágica decepção e a segunda tão alegre que caberia em qualquer jingle de refrigerante, bem ao modo "Beatle" de "Help" entre outras. O difícil é saber se a "Susie Cincinnati" seria aquela que trouxe a novidade ou aquela que a aceitou, por dinheiro. Mas é quase certo que talvez os novatos dos "Beach Boys" não tenham gostado muito da Caronte Moderna, mas também ninguém nunca gostou.

Já que a dama da noite andava tão fria e prática, melhor seria voltar pra casa, pra califórnia, pro Rock brotando dos negros norte americanos. É que, antes da rivalidade de gêneros entre os jovens burgueses da América, os adolescentes recém saídos da Segunda Guerra andavam satisfeitos, juntos e iguais em número e gênero. Assim eram os "Six Teens", seis adolescentes afrodescendentes da Califórnia (três garotos e três garotas) que dividiam suas vozes pra compor belos arranjos simples e certeiros pra suas canções. E foi destes garotos que os surfistas se valeram pra tentar fazer de um grande hit pré 1960 um novo grande hit pós 1970. "A Casual Look" de Ed Wells, o mais novo dos seis, à época com apenas 13 anos, é uma narrativa simples, mas eficaz, em que o protagonista tenta convencer sua amada a se casar com ele, pois teria que viajar em breve pra uma missão de até quatro anos pelo exército no exterior, pra que ela não fosse de mais ninguém, óbvio, durante esse tempo. A regravação desta canção é um retorno no tempo bastante relevante pra que o grupo pudesse se explicar, orientar e relembrar aos ouvintes de suas raízes sinceras e talvez utópicas.

Mas, se é pra buscar raízes, é melhor ir então pra quando o Rock nem sequer existia. O ano era 1940 e trio A. Lewis/L. Stock/V. Rose compôs para o filme "The Hill Siging" uma das músicas mais regravadas dos EUA: "Blueberry Hill". O primeiro a trazer o clássico para a era da música profana foi Louis Armstrong em 1949, fazendo do singelo Foxtrot um genial Jazz Song (riquíssimo em nuâncias). E foram muitas reinterpretações depois, até se tornar quase que uma canção consagrada como Rock'n'Roll (Até Led Zeppelin gravou) na versão de Fats Domino em 1956, seguido por Elvis e outros a partir de 1957; assim, se tornou um clássico do Rock. "The Beach Boys" se limitou a fazer praticamente um ibsis literis da canção, mas que não deixou nada a dever aos originais, posto que as vocalizações acrescentadas à canção ficaram de primeira classe, lembrando até uma espécie de mescla entre o antes e o depois do Rock na canção: as batidas no tambor aliadas ao capricho nos arranjos vocais.

Voltando ainda mais, vai-se então direto pra casa. Na composição de Brian Wilson e Bob Norberg (engenheiro de som), a empolgante "Back Home", de forma bem inusitada nos leva pra um suposto verão em Ohio, ora veja, com cavalos, galinhas e tudo mais que se possa encontrar em uma fazenda comum. Parece muito estranho para uma banda intitulada "The Beach Boys", em que todos os integrantes são californianos... ops!... eu disso todos!?... Não. Al Jardine não era nem mesmo norte americano, quanto mais da Califórnia; de fato conheceu e cresceu com os irmãos Wilson no 31º Estado Americano, mas, na verdade, nasceu em 1942 na cidade de Lima, no Peru, de onde se mudou com a família pra Ohio (ah... explicado... ou quase) e, mais tarde para as cercanias das praias já bem conhecidas. Então seria uma homenagem a um dos lugares de residência do guitarrista dos "Beach Boys"? Não exatamente: pode ser mesmo uma homenagem, mas talvez mais profunda e significativa que se poderia esperar; o que acontece é que Al Jardine deixou os praianos logo no início do sucesso pra ser um funcionário bem comum de uma empresa bastante tradicional; pode-se entender daí que o guitarrista, apesar de ser amigo e conhecer o estilo de vida californiano, naquele momento, andava preferindo suas próprias raízes rurais, deixando o grupo a fim de passar suas férias. Por sorte o garoto peruano voltou logo dessa temporada e, no ano seguinte, já estava de volta às cordas e aos vocais do surf.

Agora, em um outro cover, "In the Still of the Night" (Fred Parris), gravada por "Parris and The Satins", grupo vocal sem muita expressão nacional, mas que, no decorrer da carreira foi angariando mais ouvintes e fãs; não chegou a ser grande sucesso, mas a música regravada por "Beach Boys" foi um hit até que razoável no fim dos anos 1950; tanto que mereceu espaço nos "15 Big Ones" dos moços, como forma, talvez, de uma balada das mais melosas no disco, o que também não era especialidade dos caras da "Good Vibration". A canção é sobre um casal que se encontra na calada da noite cujo eu-lírico jura e promete tentar, e reza até, manter a pureza do par amado até a luz do dia chegar, mas nada garantido. Ótima balada pra casais anacrônicos nestes tempos de Funk-me sem parar.

Pra encerrar, o disco, "The Beach Boys" escolheu uma obra prima da canção dramática lançada inicialmente pelos "Righteous Brothers" em 1965, ano de maior sucesso dos californianos, que tentavam enfrentar a invasão britânica, igualando sua sonoridade à deles. Incrivelmente coincidente (?), o eu-lírico da letra diz que não tem tudo que sua amada quer de um cara, mas que vai trabalhar duro pra ter; pede por favor que não o abandone, pois, de tudo que ele teve e perdeu, ela é única que ainda lhe sobra, tudo com acompanhamento bem lento, uma melodia bem dramática e interpretação exagerada: um excelente "pelo amor de Deus!". Interessante é fazer uma ponte com fase em que a música foi gravada por seus compositores, 1965, e o início da debandada dos ouvintes do Rock simples e básico para uma música mais intelectual, o que fez com que "Beach Boys" perseguisse esse objetivo, fazer uma música "melhor", com tanto afinco que sequer davam ouvidos aos fiéis amantes da Surf Music que os abandonavam mais e mais; agradavam a crítica especializada, e os fãs o deixavam. Outra analogia possível seria com o coincidente início do abuso de entorpecentes, sobretudo por Brian Wilson, uma das vozes principais na gravação, em parceria com seu irmão Carl. Brian teve que deixar os irmão e o grupo por causa do agravamento de sua doença mental por conta do uso excessivo de Cannabis e LSD; tentou tudo que podia pra não ficar pra trás nos novos tempos, e perdeu a saúde; seu companheiros, igualmente, tentaram de tudo pra acompanhar os novos rumos, e perderam seus fiéis fãs:

"I can't give you the worldBut I'll work hard for you girlWell I'll work hard"
(THE BEACH BOYS - 15 Big Ones - Brother Records;
EUA,  junho de 1976)

Depois dessa viagem pelas praias, e fazendas, dos EUA, tive a impressão de percorrer os altos e baixos de um grupo de garotos, com gana e ideal, em busca de um lugar ao Sol e estrada livre pra correrem com segurança e chegarem ilesos à festa pra qual não foram convidados, mas da qual gostariam muito de participar. Foram mesmo vibrações das melhores.


RFERÊNCIAS:


THE BEACH BOYS



15 BIG ONES

Terra



INFLUÊNCIA








sábado, 11 de junho de 2016

HÁ 10 MIL ANOS ATRÁS

Há 10 Mil Anos Atrás


Como eu poderia começar a falar de 1976, onde acho que tudo teve início, a não ser por Raul Seixas e seu clássico "Há 10 mil anos atrás"?



Isso mesmo, sem querer me gabar, acho que o mundo, e a música, principalmente a música, começou em 1976. Nesta série de intenções críticas, tentarei demonstrar a veracidade deste pequeno vero devaneio.

E, ora, se começamos em 1976, começamos por causa de Raul, que já era muito vivo "há 10 mil anos".

Finíssima nata dos clássicos do Rock, este disco, o quinto da carreira solo do baiano Raulzito, sem os Panteras, veio salvar o futuro maluco beleza do fracasso do álbum lançado no ano anterior, "Novo Aeon", que, apesar de conter clássicos do Pop brasuca ("Tente Outra Vez", "Rock do Diabo",   "A Macã", a faixa título da obra e outros), não agradou à crítica e não vendeu o esperado, sobretudo depois do sucesso do primeiro album ("krig-Ha, Bandolo"- 1973) e da venda em larga escala alcançada por "Gita"(1974).

Se "Novo Aeon" pareceu ocultista e cabeça demais pros iniciantes dos anos 1970, "Há 10 Mil Anos Atrás" trazia o nascido no fim da segunda grande guerra, Raul Seixas, mais básico e simples no cantar (pequena volta ao Folk e Rock das antigas) e mais direto e cotidiano nas abordagens temáticas, mas nunca raso ou previsível; continuava tentando levar seu público, fiel ou transitório, além do que se espera para uma grande massa de populares consumidores de cultura.

Em 1976, ano de Ernesto Geisel e das mortes, um tanto estranhas, dos reformadores Juscelino Kubitschek e João Goulart, o marido de Glória Vaquer, ainda em parceria com Paulo Coelho, abre o mundo novo com "Canto Para Minha Morte" originalíssima ideia em que o eu-lírico se derrama em sentimentos antagônicos e dispersos por aquela única que será só sua, sem aviso prévio: a morte. A letra da canção é genial desde o princípio, mostrando que o eu-lirico nunca é o mesmo a cada passo ou passagem do tempo, há pequenas mortes que o acompanham; e vai destrinchando o assunto, colocando a imprevista data da grande chegada daquela de quem ninguém pode fugir, em contraponto com todas as futilidades a que tanto damos importância em nossa breve e medíocre vida, e que serão interrompidas por esta que nos separa do que, em vida, somos e temos.

"Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música que eu deixei pra compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?"
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 

Realmente, trivialidades importantíssimas pra que a derradeira tenha a paciência de esperar o fim.

E assume, depois, quem é que possui verdadeira importância "Vou te encontrar, vestida de cetim", e quem é que deve esperar por quem "Eu te amo e te detesto, morte, que talvez seja o segredo desta vida"; tudo cantado, e declamado, no tom mais trágico e dramático possível pra um baiano da década de 1940, adepto do Rock e fã do Baião de Luiz Gonzaga.

Então, numa segunda dose sem gelo, ele desce com o Folk "Amigo Pedro", em que são colocados os dois pontos de vista de antigos e , antes, inseparáveis amigos, que agora se antagonizam: o eu-lírico e "Pedro". Canção composta e  gravada por volta dos 30 anos do autor, parece tão saudosista, e realmente madura, que, sendo gravada no fim da carreira, ninguém duviadaria ser uma obra original de um sessentão, caso tivesse vivido tanto.

Na canção, o eu-lírico se põe como a parte que escolheu o novo, o caótico, o imprevisível, o festivo... contra aquele, o "Amigo Pedro", que disso tudo abriu mão, numa parte do caminho, em favor da segurança, do bem estar, da certeza e da clareza dos sentidos; fato que provoca muita piedade naquele que possui a voz na canção: "Pedro, onde você vai eu também vou, é que tudo acaba onde começou". Percepção agudíssima, só alcançável por quem encontrava nos discos de Rock e livros de filosofia o que lhe era negado na escola, que tanto o depreciou.


Mas nem sempre a briga ou o beijo nos salva: em "Ave Maria da Rua", o amigo velho de guerra de um famoso mago, com quem compôs a canção do disco que poria fim à parceria tão cultuada, transfere sua revolta pra uma forma de oração de um certo desvalido para uma "mãe" que conhece os enjeitados. Na canção, o eu-lírico se desmancha em preces a uma mulher que engloba, que "encarna" todas as mulheres nela, às da rua e às do altar.


"Teu nome é Yemanjá
E é Virgem Maria
É Glória e é Cecília
Na noite fria
Oh, minha mãe
Minha filha tu és qualquer mulher
Mulher em qualquer dia"
 (SEIXAS, Raul - Há 10 Anos Atrás 
    Philips; Rio de Janeiro, 1976) 


Aliás, penso ser esta a grande sacada da canção: mostrar a mulher como um ser universal, que, estando onde estiver, estando na função ou na obrigação que lhe couber, é sempre aquela que vela por quem sofre, por quem teme, por quem quer, mas não é atendido. A canção começa com uma certa calma, como quem tem certeza de que sabe exatamente que busca conforto no lugar certo, e vai tomando corpo e voz, se avolumando na instrumentação e no drama emprestado por Raul ao cantar, como se, mesmo sabendo que teria o conforto buscado, tivesse que demonstrar sua precisão e confiança com toda força que pudesse dispensar. É a melhor canção de amor feita por este fã de Elvis, e sabemos que ele não era muito assertivo ao tentar cantar pras mulheres.

Mas então, depois dessa pequena fuga, ele volta ao tema social (ou antissocial). "Quando Você Crescer" traz a principal das angústias de Raulzito, e dos que passaram pelos anos 1960 e 1970: a falta de escolha e oportunidade de completude na sociedade cristã capitalista. Ao mesmo tempo em que pergunta "O que é que você vai ser quando você crescer?" (retórica impecável), logo responde, mostrando que, na verdade, tudo já foi escolhido pra todos, pra quem segue e pra quem desassossega:


"O que que você quer ser quando você crescer?
Aguma coisa importante?
Um cara muito brilhante?
Quando você crescer?
Não adianta, perguntas não valem nada
É sempre a mesma jogada
Um emprego e uma namorada
Quando você crescer?"
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 
A ironia ácida e eficaz é clara na canção , o tom preferido do compositor, e de seus ouvintes, inclusive deste que vos escreve; essa falta de liberdade de escolha é tema recorrente nas letras e nas ideias do cantor, anarquista de carteirinha e caótico por natureza. Em seu "Baú do Raul", cita tal preocupação mais de uma vez ao explicar sua ânsia por uma sociedade alternativa. Se, por uma acaso, alguém aí ainda não havia pensado no assunto, ouvir essa música é a melhor oportunidade pra iniciar tal reflexão.

No "Dia da Saudade" (Raul Seixas e Jay Vaquer) tudo vai passar e começar diferente... mais uma vez o tom anárquico, algo que conhecemos hoje como um belo "foda-se", toma conta do texto e do tom: celebrar por celebrar, no canto que for, com a pessoa que vier. Nunca é possível se arrepender ao escolher essa e outras canções do maluco beleza no fim do dia de uma semana pra lá de estressante; muito recomendável.

E é gol, de letra! "Eu também Vou Reclamar" (Raul Seixas), clássico dos clássicos, faz a mais lúcida descrição do cenário do Pop brasuca daqueles idos de 76: cheio de referências a muitas das canções de sucesso daquela época (para iniciados), o agora menestrel reclama das canções que se diziam de "protesto" que, segundo Raul, faziam parte de uma tendência de mercado da qual ele já estava calejado e que ele mesmo havia iniciado, mas apanhava por causa disso em vez de enriquecer, ao contrário da nova geração. Depois de dizer, na letra, que também iria reclamar, pra dar uma aula de protestos, entre uma e outra questão social, política e filosófica, protesta mesmo é contra as novas canções de protesto que, pra ele, não o levaria (nem a ninguém) além das "nuvens passageiras", algo que ele não estava mesmo interessado em ser, nem muito menos "apenas o cantor". Como seria essa canção feita para os dias hoje feita por um Raul sobrevivente ou renascido?


"E sendo nuvem passageira
Não me leva nem à beira
Disso tudo
Que eu quero chegar
-E fim de papo!"
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 

Depois de tanto lutar e reclamar, o compositor de "As Minas do Rei Salomão" só quer agora mesmo é um bom incenso e uma ótima companhia pra descontrair. As riffs e batidas secas e pesadas dão clima de urgência do eu-lírico que não pretende ter nesse momento nada mais que "amor":

"Entra, vem correndo para mim
Meu princípio já chegou ao fim
E o que me resta agora é o seu amor"
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 
A letra é um desabafo claro contra a luta diária e paternalista do homem contra o homem a favor do homem; essa angústia parece tão intensa para o eu-lírico da canção, que, além de desejos de prazeres carnais e sensoriais, chega a querer vestir-se com um símbolo conhecido da feminilidade (e da realeza) que o próprio teria dado àquela que o visita "E me empresta o seu colar / Que um dia eu fui buscar / Na tumba de um sábio faraó". Parece, neste momento de encontro e busca, que não há nada mais importante para o eu-lírico do que aquela que chega com extravagâncias fora do comum, e, por conseguinte, do que ele próprio, o desfrutador. A batalha, que por ventura ainda possa precisar este que canta, não tem mais importância nem precisão neste breve momento de alívio.


"Do passado me esqueci
No presente me perdi
Se chamarem, diga que eu saí"

(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 


Depois da brabeza absoluta do macho baiano querendo prazer e delícia com sua fêmea favorita, como se renovado por essa força estranha que cerca o gênero feminino, mais calmo e decidido, o compositor, em “O Homem”, dá uma guinada no andamento e no tema pra reafirmar nesta o princípio do LP: “Eu vou tirar/Meu pé da estrada/E vou entrar também/Nessa jogada/E vamos ver agora/Quem é que vai güentá”, ou seja, Raul estava já na estrada do rock e do protesto há tanto tempo que não era hora ainda de abandonar o que ele mesmo havia construído. Num primor de casamento entre letra e música, “O Homem” começa muito lenta e calmamente como alguém que passa a explicar seus motivos, guinando depois para um grande estranhamento unindo sua voz esganiçada com o agudo de um contrabaixo, ambos dissonantes da tonalidade do trecho, pra dizer que seu “canto” “não presta” e que, por isso e assim mesmo, resolveu ficar e continuar com quem está e com quem virá a partir dele.

“Esse meu canto que não presta
Que tanta gente então detesta
Mas isso é tudo o que me resta
Nessa festa, nessa festa...”

(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 


A canção em si parece uma outra reafirmação do tema recorrente de 'esse é meu lugar e ninguém me tira daqui', tão recorrente nas canções de Raul Seixas: “A Mosca”, “Let me sing”, “Al Capone”, “Rock do Diabo”, entre outras. Como se o compositor tivesse plena consciência de suas fragilidades: baiano no American Way Life, voz esganiçada, roqueiro amante de Luiz Gonzaga, botequeiro intelectual, leitor mulherengo, pai boêmio e, mais que tudo, livre pensador falante da Língua Portuguesa da América Latina. Tudo parece atrapalhar bastante o moço de Salvador que decide ser cantor.

Todavia, isso tudo também pode ser reinterpretado, quase com os mesmo argumentos e quase nas mesmas condições, como uma bela canção de amor a uma mulher, afinal, se trata d“O Homem” dizendo de como continuará seu amor na cama e com seus filhos.

“Eu...
(vou ferver)
Como que um vulcão em chamas, como a tua cama que me faz tremer...
(...)
(vou viver)
Vou poder contar meus filhos, caminhar nos trilhos, isso é pra valer...”

(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 


Mas, com certeza, se trata de uma canção a respeito da esperança no futuro, esperança de quem não sabe bem o que virá, mas que sente que será renovador pra todos.

“Pois se uma estrela há de brilhar
Outra então tem que se apagar
Quero estar vivo para ver
O sol nascer, o sol nascer, o sol nascer...”
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 


Mas, “só pra variar”, Raul Seixas, depois de tanto reclamar, duvidar, procurar abrigo e prazer e decidir ficar (em casa), retado, volta pro início de tudo: o Mistério e o Baião. A parceria, mais uma vez certeira, com seu amigo mago é digna de todo prêmio que levar em conta originalidade e relevância cultural. Por que originalidade!?... Ora, quem mais, em 76, desafiaria o estabelecido, cantando, na grande mídia, um Baião bem ao estilo do ‘Veio Lua'? No campo do intelectual, na área do Rock’n’Roll, no universo filosófico...  não caberia um ‘Rastapé’, a não ser em se tratando de Raul Seixas como cantor. E por que relevância cultural!?... Ora, quem mais poderia combater a ditadura dos milicos, do capital, da moral, do racional, do acadêmico... senão Raul com Paulo, falando em coincidências tão obvias e que ninguém antes ainda percebera; pois veja, se toda gente não percebe coisa tão óbvia, como poderiam lhe dizer o que seria assim e o que seria assado? Pois veja, se ninguém é capaz de explicar essas estranhas coincidência, como poderia alguém tentar lhe explicar algo já bem conhecido? Pois veja, se Raul e Paulo já haviam se intrigado com tamanha força, quem pode garantir que já não soubessem sua causa e suas consequências, e, por isso mesmo, já conhecedores do cerne de toda gente, portanto, impossível de serem manipulados?

O tom da canção é claramente irônico e sapiencial, ou seja, o eu-lírico demonstra as coincidências, humanas e naturais, com relação aos números como se isso fosse já uma coisa muito conhecida e comprovada por este em comparação com ouvinte, que, caso não se cuide, será devorado por tais números ou por aquele que lhes conhece do “princípio ao fim”.



“- Pra encerrar
Eu falei de tanto número, talvez esqueci algum,
Mas as coisas que eu disse não são lá muito comum,
Quem souber que conte outra, ou que fique sem nenhum”

(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 
O ritmo é empolgante e a letra precisa se encaixa feito luva no andamento e na melodia. Vale a pena uma audição mais atenta, caso ainda não tenha feito isso.

Só que, logo em seguida, Raul Seixas dá nova guinada no ritmo do disco, dessa vez com “Cantiga de Ninar”, que provavelmente deve ter sido composta em homenagem à sua segunda filha recém-nascida de sua segunda esposa. É a canção com o andamento mais lento do LP, talvez uma das mais lentas do compositor, como se essa fosse a única forma de “frear” o autor em suas ambições espirituais e sociais: a mágica do amor e da vida renascendo na forma de uma menina (Raul foi pai de três com três esposas). 

Mais do que uma homenagem, na verdade, a bela letra parece uma forma de religação com o homem antes do homem: o homem que dorme sem esperar, pois não tem planos;

“Nada tão belo como uma criança dormindo
Nem tão profundo como dormir sem sonhar
Nem tão antigo como o sonho dos teus olhos
Nem tão distante como a hora de acordar”
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 

o homem sem angústia, pois sua realidade é aquilo que canta;
“Dorme enquanto teu pai faz músicas
Que é a forma dele rezar
Todos os sonhos na realidade
São verdades, se eu puder cantar”
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 
o homem que não se preocupa, pois, quando precisa, tem;

“Você chora quando tem fome
Mas vem logo uma mamadeira
Amanhã se você chorar
Vai chorar tua vida inteira”
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976)  
o homem que não anseia, posto que é e também está.

“Fiz meu rumo por essa terra
Entre o fogo que o amor consome
Eu lutei mas perdi a guerra
Eu só posso te dar meu nome”
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976)  
Assim, se religou ao princípio.

E pra confirmar sua inovação, e verdadeira contracultura, Raul Seixas, contrariando o esquema de mercado, a expectativa do consumidor, e, acima de tudo, a lógica dos músicos popularescos, coloca a faixa título do disco “Eu nasci há 10 Mil Anos Atrás” como a última do Lado B, a que vai fechar o produto, quer dizer, genialmente o compositor lança uma proposta no título do LP “Há 10 Mil Anos Atrás”, depois vai articulando as canções de modo que, coerentemente, levem o ouvinte a entender sua conclusão “Eu nasci há de mil anos atrás/e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais”, ou seja, não há nada que se diga ou que se faça que ele, o eu-lírico, já não tenha ouvido ou visto antes. Como praticar o engodo com alguém como este que canta no disco?

Em resumo, Raul Seixas, a seu entender, tinha como principal objetivo, através desse disco, talvez também dos demais, liderar a gente que o compreendesse pra algo novo, algo que não seria político, social, profano, santo, artificial ou natural, mas algo lógico, vindo de alguém que já conheceria todos os caminhos e direções possíveis, e impossíveis.

Alguém se dispõe?
-"Um dia, numa rua da cidade
Eu vi um velhinho
Sentado na calçada
Com uma cuia de esmola
E uma viola na mão
O povo parou para ouvir
Ele agradeceu as moedas
E cantou essa música
Que contava uma história
Que era mais ou menos assim:"
Eu nasci 
Há dez mil anos atrás!
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais...
Eu vi Cristo ser crucificado
O amor nascer e ser assassinado
Eu vi as bruxas pegando fogo
Pra pagarem seus pecados
Eu vi!...
Eu vi Moisés
Cruzar o Mar Vermelho
Vi Maomé
Cair na terra de joelhos
Eu vi Pedro negar Cristo
Por três vezes
Diante do espelho
Eu vi!...
Eu nasci 
Há dez mil anos atrás!
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais...
Eu vi as velas
Se acenderem para o Papa
Vi Babilônia
Ser riscada no mapa
Vi Conde Drácula
Sugando sangue novo
E se escondendo atrás da capa
Eu vi!...
Eu vi a arca de Noé
Cruzar os mares
Vi Salomão cantar
Seus salmos pelos ares
Eu vi Zumbi fugir
Com os negros prá floresta
Pro Quilombo dos Palmares
Eu vi!...
Eu nasci 
Há dez mil anos atrás!
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais...
Eu vi o sangue
Que corria da montanha
Quando Hitler
Chamou toda Alemanha
Vi o soldado
Que sonhava com a amada
Numa cama de campanha
Eu li!
Ei li os símbolos
Sagrados de umbanda
Eu fui criança pra
Poder dançar ciranda
Quando todos
Praguejavam contra o frio
Eu fiz a cama na varanda...
Eu nasci 
Há dez mil anos atrás!
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais...
Não! Não!
Eu tava junto
Com os macacos na caverna
Eu bebi vinho
Com as mulheres na taberna
E quando a pedra
Despencou da ribanceira
Eu também quebrei a perna
Eu também...
Eu fui testemunha
Do amor de Rapunzel
Eu vi a estrela de Davi
Brilhar no céu
E para aquele que provar
Que eu tô mentindo
Eu tiro o meu chapéu...
Eu nasci 
Há dez mil anos atrás!
E não tem nada nesse mundo
Que eu não saiba demais...
(SEIXAS, Raul - Há 10 Mil Anos Atrás -
Philips; Rio de Janeiro, 1976) 

REFERÊNCIAS

Terra

Wikipedia

Discografia

You Tube