domingo, 31 de julho de 2016

ÁFRICA BRASIL

África Brasil

E doze anos antes também foi bissexto.


E, neste ano de acerto, de recuperação do prejuízo no tempo, em que o caldeirão de óleo fervente do entendimento e da democracia se derramou sobre os povos, um tal Jorge tão Ben quis cantar e tocar, do jeito que desse, do jeito que fosse, do jeito que dele viesse.

1964 foi o ano em que a liberdade e a repressão, cada qual a seu lado e modo, aumentaram em todo mundo, polarizando tudo e todos, nunca antes, nem depois, esquerda e direita foram tão antagônicos e distinguíveis.

No Hemisfério Norte, as reações populares contrárias às guerras, invasões e bloqueios se tornavam notícia frequente em todos os meios, ao mesmo tempo em que a caça e a repressão a pensamentos e pensadores de vanguarda e libertários se intensificava.

No Hemisfério Sul, as colônias, declaradas, se revoltavam e se articulavam, à esquerda, pra lutar por sua independência dos exploradores do Norte; as colônias, ‘liberadas’, davam seus primeiros, e últimos, suspiros de aspiração à libertação da influência imposta por seus antigos, e novos, colonizadores, em contraponto com a total militarização e antidemocratização de todos os governos, com apoio e auxílio total das potências econômicas do globo.

A cultura, em geral, se polarizava do lado das minorias, dos excluídos e do outro: modo de agir, modo de pensar, modo de dizer, modo de ser; artistas e intelectuais buscavam a aproximação do erudito com o popular, do novo com o antigo; queriam a estética do heterogêneo, em oposição ao homogêneo imposto pela elite dominante das décadas anteriores e aceito pelo povo dominado de então; o tom nas artes era a popularidade intelectual.

Já em primeiro de janeiro, estreava, na BBC, “Top of the Pops”, programa semanal que, por 40 anos, mostrou aos londrinos as músicas e os músicos mais vendidos; o popular começava a ter seus espaços no meio oficial.

Também foi neste ano que europeus conseguiram uma nova invasão das Américas, mais uma vez, causando choque e alvoroço: Brigitte Bardot em Búzios e “The Beatles”, and ‘friends’, no “Ed Sullivan Show”: as estrelas populares eram cada vez mais populares.

Aqui nos pobres trópicos, tivemos que nos retrair com a repressão militar e nos esperançar com os que lutavam pela democracia e pelo povo; no Brasil, João Goulart, prometia terra a quem não tinha e direitos a quem precisava, e foi deposto, no mesmo ano, pelo golpe militar de 31 de março: o povo, no Brasil, perdia a guerra pra elite. Na África, os partidos de esquerda se mobilizavam para pegar em armas e lutar para se libertar dos colonizadores europeus, sobretudo os de Portugal, que, por sua vez, também intensificava a ditadura militar sobre seu povo e suas colônias: o povo, no antigo império globalizador, iniciava sua luta por liberdade. Nas Arábias, os grandes produtores de petróleo se união pra enfrentar os reais interesses dos países que tanto precisavam do combustível extraído do ouro negro: os sultões, no islão, se defendiam e lucravam mais com a menina dos olhos dos países industrializados.

No Oriente, burocraticamente e forçadamente socialista, Nikita Khrushchov era substituído, e maldito, por quem sem sentia extremamente humilhado e prejudicado por sua política de agressividade ao expansionismo dos neoliberalistas e libertação e aproximação daqueles que sofreram com a perseguição do regime stalinista, quase chegou a bater no rosto de Mao Tsé, da China, com sua bota militar; rivalizou o quanto pode com os países da OTAN e com os Estados Unidos, em tudo. Acelerou a corrida espacial e armamentista, anulando, assim, a busca por hegemonia da América do Norte sobre o globo; o fim de seu governo agressivo marcou o início do colaborismo com os países colonialistas e o começo do caos soviético que culminou na desagregação da União e posteriores guerras étnicas nos Bálcãs: o socialismo, no Oriente, se rendia às estratégias de mercado.

Um ano depois, até Bob Dylan deixaria sua caipirice conscientizada de lado pra se tornar cosmopolita e lírico com uma banda de Folk Rock no apoio...

O ano da crise dos mísseis do bloqueio a Cuba, Outdoor de Khrushchov na beirada de Miami, também construiu o temperamento e o ideal de um principiante na indústria do entretenimento nascido em Madureira, mas criado em Rio Comprido, bairro do Rio de Janeiro, o único, localizado entre a Zona Norte, da residência e do povo, a Zona Sul, das praias e dos turistas, e a Zona Central, do comércio e do trabalho.

Em 1964, Jorge Ben - batizado como Jorge Duílio Lima Meneses, em 22 de março de 1945, por sua mãe migrante da Etiópia, casada com o estivador e pandeirista, Augusto Meneses, e morador da favela da Rua do Bispo -, já conhecedor e atuante da música feita pra noite carioca, lança seu primeiro disco, “Samba Esquema Novo”, onde misturava - sem filtro, sem artifício e sem malícia – tudo que ouvira e apreciara até então: SambaRockJazzBossa Nova... numa levada tão alegre e balançada, mesmo ao falar de lamentos amorosos, que deveria ser uma ótima pedida no salão de qualquer gafieira por que tenha passado. Sua música era tão dele e particular, ao mesmo tempo que refinada, que, mais tarde, sofreria até preconceito artístico por parte da mídia e de outros artistas por ser inclassificável e inimitável, por tanto, impossível de transformar em produto rentável ou movimento influenciador.

O disco foi muito bem recebido pela crítica da época que ‘previu’ seu esgotamento rápido nas lojas, assim como os anteriores de Jorge Ben lançados em 78 rotações.

Hoje, o LP figura em 15º entre os 100 melhores lançados no Brasil por compositores brasileiros.

Com essa obra, foi o primeiro compositor a ter destaque como genuinamente brasileiro, depois do sucesso da Bossa Nova entre os burgueses cariocas; com uma diferença gigantesca: Jorge Ben, e sua música, vinha da noite, do baile e da favela, era popular entre populares e era elite entre os elitizados, já que cantava e tocava como o pobre da favela e como rico do condomínio, sem malícia.

O que Jorge Ben fazia vinha de sua natural natureza, menino criado entre Brasil e África, no subúrbio limítrofe entre os bairros de trabalhadores e os bairros de investidores. Não podia ser outro tipo de pessoa que não Jorge Ben: cosmopolita, agregador e pela união.

Tanto assim era, que não mudou a fórmula: em todos os discos posteriores buscava a linguagem do total mistura formal. Só mudou mesmo foram os assuntos: de desejo por mulheres e de orgulho por heróis da pelota, passou a se preocupar mais com temas sociais e espirituais – coisa bem comum, aliás, na evolução temática e estética na grande maioria da produção artística de qualquer ícone em qualquer lugar -; Jorge Ben parecia, já naquele tempo, um artista maduro na forma, bastando pra ele ter novas ideia daquilo que poderia dizer em palavras, fato muito confortável pra o compositor e pra o fã identificado com a proposta estética, mas de muito pouca valia pra os produtores e pra os empresários do Showbiz, pois a fórmula não sofreria mutações, capazes de agregar novos ouvintes de novos tempos, e não poderia ser replicada sem que se fosse impossível lembrar do original. Portanto, Jorge Ben, e A Banda do Zé Pretinho, como João Gilberto, como Sepultura, como Chico Science... não poderia render altos lucros à indústria da música no Brasil. Porém a ideia assimilada e diluída em seus ‘descendentes’ chegados a partir de 1967 (GilCaetanoMutantesTropicalistas e o Mangue Beat) continuou seu legado com igual e maior sucesso, com ajuda das novas tecnologias (sobretudo midiáticas), e acabaram por sofrer do mesmo mal de seu antecessor: pós Big Bang, se tornaram ícones de nichos intelectuais.

Depois de desencontros e desconfortos com a grande mídia, que o não conseguia domar, e em apresentações no exterior, grandeza pra qual, talvez, o menino - apesar de experiente na vida e na música – Jorge não estivesse preparado, e de alguns fracassos em vendas, mas não de crítica - pra variar – o verdadeiro brasileiro emplacou discos geniais: “A Tábua de Esmeralda” (1974), “Solta o Pavão” (1975) e “África Brasil” (1976), onde se aprofundava em seu engajamento místico e social – os dois primeiros muito mais espiritualistas e repletos de menções ao uso de ácido como meio de transcendência e este último com um grito por igualdade social do princípio ao fim.

Em novembro de 1975, Angola, depois de 20 anos de luta, conquista sua independência de Portugal, país que explorava com mãos de ferro sua última colônia em solo africano.

No ano seguinte, Jorge Ben, ainda chamado assim, grita e clama por zumbi libertador no LP “África Brasil”, também o de guinada libertária do criador do Samba-Rock.

No álbum anterior, “Tábua de Esmeraldas”, Jorge já fazia suas primeiras menções de abandono da antiga forma predominantemente acústica - seu instrumento, o principal da banda, era o violão -, pra adotar a eletrificação dos instrumentos da banda como nova e definitiva forma para a interpretação de sua composições. O disco de 1976 trazia o Jorge Ben agora de guitarras, e somente ele, em punho, era agora, concretamente, um cidadão do mundo. Antes de alinhamento com os movimentos de Black/Soul da América do Norte, foi também uma estratégia de mercado, com o fim de ser apreciado também pelo mercado europeu, que buscava exotismo cultural nos países periféricos; foi assim incluído no emergente World Music, novo gênero a incluir tudo que soasse a composição de sonoridade fora do bem conhecido do eixo Europa-EUA.

Jorge Ben se cosmopoliza definitivamente, mas no meio de um mundo que se retrai a fazer frente à crescente ânsia por liberdade a se espalhar pelo mundo, entre estas a dos movimentos negros, reprimidos nos Estados Unidos e na África, onde os afrodescendentes lutavam, fazendo uso de violência quando necessário, por liberdade, direitos sociais e independência.

“África Brasil” é a obra mais consciente de seu papel social e étnico composto pelo cantor de Madureira; mesmo não sendo tão explicito em todas as letras integrantes do disco, somente o fato de incluir em cada faixa instrumentos de origem africana, herdados do samba, já mostra sua clara intenção de se posicionar nesse ponto dos acontecimentos como afrodescendente, com implicações políticas e culturais. Outra evidência de tal é o quase que total abandono do modo bossanovista, do qual muito se aproveitou na década anterior pra conquistar seu espaço no main stream, mas que, apesar de ser oriundo do Jazz e do Samba – ou um outro modo de tocar Samba, como afirmava João Gilberto -, era um estilo já desgastado pela burguesia – nicho produtor e consumidor – e muito distante da realidade universal popular que ele então buscava. Agora o amor e o esoterismo em sua música davam lugar à luta social e à integração ao novo mundo a se globalizar.

Foi um grande sucesso de crítica e de venda, mais que os anteriores, figurando como o 22º melhor álbum já produzido, de uma lista de 50 – único brasileiro -, e, estranhamente, em 66º em uma dos 100 melhores do Brasil, ambas as listas publicadas pela revista "Rolling Stones".

A primeira faixa do disco é “Ponta de Lança Africano”, que pretende unir, assim como no título, os dois ‘continentes’ negros do globo: África e Brasil; dando uma ideia do que viria para o ouvinte do disco, e de Jorge, daí em diante.

Conta a história de um tal Umbabarauma, boleiro africano, mas conta-se que, na verdade, durante uma turnê pela França, Jorge Ben teria visto, na TV do Hotel em que se hospedara, uma partida em que um ponta de lança da África, Babaraum, num dia pra lá de inspirado, foi artilheiro da partida; mas, lendas a parte, o fato é que a faixa parece ter sido escolhida a dedo para encabeçar o set list do álbum: primeiro, por que faz referência clara à força do povo na letra, que se assemelha a um canto de guerra, com frases imperativas e positivas de avanço sobre o adversário, e fala do esporte popular mais popular; segundo, por que usa o soul mais requintado da “Motown” norte americana, que não tinha como característica principal o engajamento político, pra significar o começo de uma “batalha”, ou seja, no Brasil, como na África, como nos EUA, como na Europa, o negro passaria ter que lutar por igualdade de direitos e deveres, mas com swing, jeitinho e requinte. À primeira audição parece só mais uma canção de mais um brasileiro aficionado pela pelota e por seus mestres, mas não: é bem mais que isso; trata-se de um hino de luta por independência, e um aviso: o afrodescendente pode e quer muito mais do que aquilo que lhe sobra da estratificação estabelecida e do estado ordenador, os guerreiros das quatro linhas agora queriam ganhar também o globo.

O mais interessante é que, nesse momento mundial, os negros haviam avançado muito em suas lutas sociais, mas, no Brasil, qualquer organização e movimento étnico era reprimido pela ditadura com o mesmo afinco com que se reprimiam os grupos ‘terroristas’ que buscavam a restituição da liberdade democrática no país, como se mesma coisa fossem; mas todos sabemos que se assemelhavam somente no objeto: a liberdade, e não no meio, a luta e a clandestinidade, porém, talvez, tudo tivesse que mudar.

Ainda na onda soul a la “Motown”, e agora sem engajamento político (será?), o compositor se põe a falar um pouco mais do seu mítico misticismo, Jorge Ben, em “Hermes Trismegisto Escreveu”, retoma, pela primeira vez de duas nesse disco, um dos temas abordados em “Tábua de Esmeraldas”, dois anos antes, cantando, quase que infinitamente, a ideia principal da canção “Hermes Trismegisto e sua celeste Tábua de Esmeraldas”: “O que está em baixo/É como que está no alto/O que está no alto/É como que está em baixo, ele escreveu/Hermes/Trismegisto”. Porém, essa aparente alienação mística também tem, e muito, uma profunda reivindicação social, pois só haveria paz e harmonia quando todos percebessem o valor de fazer em baixo como aquilo que está no alto e de sentir no alto como aquilo que está em baixo, quer dizer, ele continuava explicando que também tinha direito ao mesmo sucesso social e humano que os da ponta de cima da estratificação mundial estavam retendo consigo. Assim, o característico refinamento e engajamento do som Black de Detroit ainda se valia nessa canção; isso sem mencionar que esse tal Hermes Trismegisto também faz parte da resistência mítica do Norte da África, redentora do próprio Alexandre, O grande, como nos conta Jorge Ben.

Mas o Jorge Ben descontraído e malemolente volta a atuar na terceira faixa “O Filósofo”, que, entre cuícasatabaques e wahs, alegre no tom, na voz e no arranjo, fala de um tal filósofo que teria chegado falando de modo agradável que a simplicidade ainda era a lei primeira: “Ele chegou descontraído/Chegou filosofando num tom de voz meio angelical/Falando das coisas belas/E das coisas simples/Mostrando como o belo pode ser simples/E o simples pode ser belo”. É Jorge Ben mais uma vez falando do valor do que emana do povo: simplicidade certeira e descontração ajuntadora; podendo-se até imaginar que o tal “Filósofo” pudesse ser o próprio compositor no início da carreira, o que pode ser confirmado com a levada bem mais próxima do que havia feito em todos os álbuns anteriores, apesar de eletrificado, mas há que se levar em consideração também a importância dos batuques nesta faixa. O mais interessante é que, na música anterior, Jorge Ben cantou de outro modo com outros instrumentos o que já havia cantado antes e, nesta, canta como e o que já havia cantado antes, mas de guitarra em punho, anunciando sua total rendição à musica cosmopolita.

E as três partes de Jorge são apresentados agora em “Meus Filhos Meu Tesouro” com o andamento ligeiro e o tom de batalha mencionados nas duas primeiras faixas, mas mantendo a importância da brasilidade nos instrumentos de origem africana usados na faixa anterior. A letra também traz e lembra a velha e sabida brasilidade de Jorge, falando de um eu-lírico que pergunta a seus três filhos; Arthur Miró, Anabela Gorda e Jesus Correia (bem brasileiros, não?), o que pretendiam ser quando crescessem, ao que respondem: (Arthur Miró) “Eu quero ser jogador de futebol”, (Anabela Gorda) “Eu quero ser dona de casa atuante ou mulher de milionário”, (Jesus Correia) “Eu quero ser tesoureiro-presidente ou liberal como você” (bem brasileiros, não?); Estes eram os de quem Jorge Ben sempre falou, pra quem sempre cantou, aqueles que agora iria defender e aqueles que pretendia deixar como tesouro da terra em detrimento do caduco mundo dos intelectuais e genocidas do hemisfério norte.

Em vez de um país do futuro, Jorge Ben nos oferecia os brasileiros do futuro, vencedores e governantes à sua maneira.

Será que Jorge Ben consegue se afastar por muito tempo de seu habitual e característico lirismo? Parece que não. “O Plebeu” conta a história de um pobre brasileiro apaixonado por uma princesa que só não tem seu amor realizado por causa de sua condição social; o plebeu de Jorge Ben chega até o absurdo de se contentar em esperar por um futuro casamento com ela, depois de vê-la passar por tantos outros, se contentando em ser o último já que, segundo ele, “O último será o primeiro/E o último sou eu”: é cúmulo e o ápice do sofrimento romântico. Mas também é possível fazer uma leitura social aqui, já que o próprio eu-lírico não se incomoda em dizer que, pra ambos os envolvidos na paixão, a condição social não importa: o verdadeiro empecilho viria de olhares e opiniões de terceiros (o que está em baixo deve permanecer em baixo, o que está no alto deve permanecer no alto).

E por falar em lirismo, o compositor foi buscar lá pros lados da velha e opulenta índia o maior, mais belo e mais caro monumento em homenagem ao amor de um homem e de uma mulher que se tem conhecimento, o “Taj Mahal”, que também dá título à sexta faixa de "África Brasil". Numa levada que lembra muito a marcha forte e acelerada dos atuais sambas-enredo cantados nas avenidas durante o carnaval, com direito a cuíca, agogô e surdo, o compositor explicaria o que viria ser “Taj Mahal”, mas se limita a explicar que se trata de um presente que o príncipe Shah-Jehan teria construído para sua amada Mumtaz Mahal, porém nem sequer menciona que se trata de um mausoléu, o maior do mundo. Parece que falta até hoje o “Taj Mahal II”, onde finalmente, poderíamos conhecer os porquês e os fatos da tal história de amor. Mas a canção vale pelo empolgante “Tê Tê Tê, Têtêretê” eterno, animador de qualquer princípio de festa.

Pra compensar a falha na narrativa de “Taj Mahal”, que não contou nada, “Xica da Silva”, a faixa sétima, conta com tantos detalhes as desventuras da Imperatriz do Tijuco, que torna-se desnecessário acompanhar o enredo pela telinha do cinema. A canção foi composta por encomenda de Cacá Diegues para o filme homônimo. Jorge Ben se limitou, ou se ateve, a apenas musicar o enredo fornecido pelo diretor. Pode até parecer mais um preguiçoso trabalho de brasuca orgulhoso de suas ajeitadinhas, mas trata-se, na verdade, de um recurso muito antigo, usado em larga escala inclusive por Shakespeare, de cantar uma narração valendo-se do verso branco, aquele que dispensa a rima, e do verso livre, que não reconhece o metro como valor estético; consiste em encaixar certa narração em ritmo e harmonia circulares e pré-definidos, tornando-se quase um mantra oriental, origem aliás deste tipo de composição. O resultado, inclusive, se mostrou bem acabado, eficiente e de bom gosto, especialmente se levarmos em conta a cacofonia, proposital, conseguida ao repetir no coro a sentença “Xica da, Xica da, Xica da, Xica da Silva”, dando impressão de referir-se ao ato sexual (Xica dá): era negra, era escrava, mas era linda e era sensual... virou Dona de Diamantina. É um legítimo coro grego feito à brasileira, com afoxé, cuíca, rebolos, guitarra swingando e vocalização feminina; na ausência dos atos e dos cenários, esta pérola serve muito bem a quem quiser saber um pouco da história privada das Minas Gerais.

De volta ao Funk Soul, mas agora com uma linha mais agressiva, influenciada pela do som de Memphis, propagado pela gravadora Stax, “A História De Jorge” é sobre um garoto que se gabava de ter um amigo, o tal Jorge, que voava e ninguém acreditava, virando, o menino, motivo de chacota, até que o amigo Jorge pareceu e se colocou a voar na frente de quem quisesse ver, enaltecendo a sinceridade e felicidade do garoto. Por que não poderia um simples menino ter um amigo capaz de voar? Sobretudo um que se chamasse Jorge? Por que não poderíamos nós ter uma amigo de Madureira capaz de encantar norte americanos e europeus? Pois temos.

Mas o disco também tem “Camisa 10 Da Gávea”, faixa que podia muito bem ser incluída nos álbuns anteriores mais ingênuos e despretensiosos, totalmente dispensável. É sobre futebol somente; fala da personalidade atlética do Zico, sempre portador da camisa 10 do Flamengo. No máximo, poderia-se tirar dessa canção algo como, se é preciso precisão certeira, só se pode recorrer a quem entende do assunto, e só. Totalmente dispensável.

Com “Cavaleiro Do Cavalo Imaculado”, o mito volta a fazer parte da temática Benjoriana; num Funk bem ritmado e agressivo, a canção retoma a força, a guerra e a resistência, usando de imagética evocadora de ícones: da força e do temor (leão do império/cavalo imaculado/Ministro de Zambi na Terra/Príncipe de toda África), enaltecendo um que seria responsável pela vitória e união dos da África: “Ele é leão do império/Cavaleiro do cavalo imaculado/Ministro de Zambi na Terra/O Príncipe de toda África/Salve o cavaleiro/Cavaleiro do cavalo imaculado”

Por último, a segunda, e definitiva, retomada de uma das faixas do disco anterior “Tábua de Esmeraldas”. “África Brasil (Zumbi)” é uma regravação, infinitamente melhor, de “Zumbi” do disco 1974. Nesta outra versão, o compositor trocou a bichogrilice sertanística da primeira por um bom exemplo do Soul de Memphis feito por brasileiros. O resultado não podia ser mais eficiente: a mesma letra, que soa a ameaça de vingança numa possível volta de Zumbi, com a força do som propagado pela Stax acrescida de instrumentos de origem africana e batidas firmes na guitarra swingada. A letra invocadora de batalha ficou muito melhor nessa nova roupagem, soa como alguém que realmente está indignado e que sabe da lei dos retornos. Vale demais a pena conferir, comparar e apreciar: “África Brasil (Zumbi) ”, “Zumbi”.

Jorge Ben, então, com "África Brasil", mudou de atitude: era sábio e manso, virou valente e guerreiro; siga-o quem puder.




REFERÊNCIA


JORGE BENJOR

SITE
Wikipédia
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
MPB.NET



ÁFRICA BRASIL 

You Tube
Terra



CRÍTICA

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