domingo, 30 de outubro de 2016

RAMONES



  RAMONES
A MÚSICA DA CLASSE OPERÁRIA

Primeiramente, Punk!

Opa, operário! 

Você também pode.


O PUNK


1974. Antes de serem 'classificados', encabeçados pelos "Ramones", jovens de Nova Iorque passaram a buscar, indo na contramão do Showbizz, mais simplicidade e rebeldia tanto na música quanto nos gestos e símbolos, fazendo surgir daí a sonoridade e o comportamento que seriam chamados de Punks depois.

Em meados da Década de 1970, o mainstream musical e ideológico era fundamentado no requinte, na tecnologia e no virtuosismo; o que excluía muita gente que não tivesse acesso ao poder econômico necessário para adquirir o conhecimento e a instrumentação que talvez possibilitasse seu pleno êxito social.

Assim, os filhos da classe operária de Nova Iorque passaram a buscar modos próprios de ser e ter no ambiente em que estavam inseridos: música que os divertisse e conscientizasse, vestimenta que os cobrisse e que os identificasse, ideologia que os movesse e que os representasse, relacionamentos que os unissem e os libertassem... Desse modo, nessa busca, os mais desvalidos, e abandonados, do Amarican Way Life se encontraram na poética, na musicalidade e no pensamento democrático de bandas como "Blondie" e "Ramones", que, ao contrário do Progressivo (requinte intelectual) e da onda Disco (requinte de entretenimento) da época, buscavam estar o mais próximo possível do popular, ao ponto de suas músicas poderem ser executadas em qualquer lugar por qualquer um, e sua moda e pensamento serem compreendidos e absorvidos por todos que fizessem parte dos que muito trabalham e pouco têm.

Muito no princípio, a música e a moda não pretendiam mais do que soar como o Rock'n'Roll básico e contagiante dos anos 1950, com estilo simples de tocar e vestuário que remetia aos adeptos da motocicleta. O grande diferencial seria a ideologia forte de um sentimento e de uma atitude extremamente democráticos aparentes nas letras com ironia ácida e com muito sarcasmo, negando qualquer tipo de regra convencional que não lhes estivesse proporcionando conforto humano algum. E os enjeitados desse tempo embarcaram na onda que não lhes prometia nada, já que as promessas do capital se mostraram falsas e infundadas.

1977. Chegando à Inglaterra, a música, agora identificada como Punk (punk, em inglês arcaico, era o mesmo que prostituta, mais tarde, passando a significar algo como vagabundo revoltado), passa a ser agregada também de certos gostos e comportamentos: estética do grotesco, atitude violenta, ideal do faça você mesmo e pensamento voltado ao niilismo (nada do que aí está me importa); além de ter sua sonoridade reinventada por bandas como "Sex Pistols", que tornou a música Punk mais agressiva e ideológica (além de mais melodiosa) e "The Clash", que colocou a atitude e o pensamento Punk em uma sonoridade mais Pop e abrangente no que tange a gênero e influência musical.

A partir de então, o que hoje conhecemos por Punk, ou Movimento Punk, se desligaria de uma simples classificação de gênero musical e começaria ser identificada como movimento ideológico-social: apesar de ser inicialmente só um modo de tocar, falar e se vestir, agora passaria a negação de qualquer gênero artístico que não remetesse à estética do grupo (simples, grotesco, anárquico, violento e  com conteúdo ideológico).

1978. A estética e a atitude Punk chega ao Brasil através de jovens de classe média de Brasília que passaram uma temporada na Inglaterra (para estudar) e filhos de operários de São Paulo que tomaram conhecimento pela imprensa (enquanto trabalhavam). O movimento de Brasília acabou por originar a maioria das bandas de Pop Rock presentes na grande mídia nacional na Década de 1980 enquanto o movimento de São Paulo se manteve íntegro em seu ideal de negação e contracultura urbana, sem se 'venderem' ao capital e ao grande mercado fonográfico, preferindo a gravação e divulgação em selos e zines; aqueles que chegaram aos grandes meios de comunicação foram logo 'destituídos' da nomenclatura Punk, assim como as Bandas oriundas do Distrito Federal, pelos radicais do movimento.

Mas, afinal, o que ser Punk?

Muito simples.

Se você faz parte de uma grande massa com muitos deveres e pouquíssimos direitos, se você faz parte daquela classe de trabalhadores que será a primeira e a mais prejudicada ao primeiro sinal de qualquer crise no porvir; se você faz parte daquela gente que é convencida a acreditar e a manter a ordem mesmo que o regime vigente não tenha condições de absorver todo o potencial humano que dele faz parte; se você não tem condições de prometer a seus descendentes um futuro digno e confortável; se você, com o que lhe resta do sistema capital, não tem mais nada a fazer a não ser fornicar e esperar o próximo dia de trabalho; acima de tudo isso, se você se sente tão desconfortável com isso tudo que prefere dar seu jeito pra que possa ser e estar com dignidade e, sobretudo, identidade... você, então, é um Punk. 

Você é aquele que:

- ri com sarcasmo e ironia das promessas impossíveis de cumprir feitas pelo capitalismo e de qualquer um que nelas acredite;

- prefere fazer do modo como consegue, mas fazer, do que ficar somente olhando e bajulando;

- veste suas roupas puídas e fora de moda, ou de contexto, com muito orgulho, pois te identificam com a classe trabalhadora, e não com a classe exploradora;

- entendeu que sem luta não poderá nunca ter o que é necessário para o conforto e o bem estar;

- sabe que o homem é perecível e grotesco, não uma estátua de mármore;

- tomou consciência de que nada que se construiu até hoje foi capaz de sanar as mazelas da humanidade enquanto espécie;

- sente na pele o desprezo da minoria econômica, mas que é maioria em capital, responsável por fazer chegar até você todas as sobras e enjeitos do que você mesmo produziu?

Se você não é este Punk, ou você é aquele capitalista ou aquele outro que, por qualquer razão, acredita (ou finge que) neste capitalista e suas artimanhas argumentativas.


Em março de 1974, Johnny, Joey, Tommy e Dee Dee, os Ramones, fizeram sua primeira apresentação na cidade em que viviam, Nova Iorque. Como não conseguiam tocar as músicas que tanto gostavam de grupos de Rockabilly da década anterior, resolveram compor um repertório próprio: "I Don't Wanna Walk Around With You" (Eu não quero andar por aí com Você) saiu 'completa' já no primeiro ensaio. A partir desta, surgiram outras também com negativas (o princípio niilista do Punk se formava já no embrião): "I Don't Wanna Get Involved With You" (Eu não quero me envolver com Você), "I Don't Wanna Be Learned" (Eu não quero ser ensinado), "I Don't Wanna Be Tamed" (Eu não quero ser domado), "I Don't Wanna Go Down to the Basement" (Eu não quero ir para o porão). Até que surgiu "Now I Wanna Sniff Some Glue" (Agora I Wanna Sniff um pouco de cola), ou seja, depois de tanto e tudo negar (niilismo teórico), resolvem agir e, pra morrerem um pouco mais, pedem um pouco de cola pra se intoxicarem a partir de então (o niilismo aplicado). Desde o princípio, os Ramones eram Punks sem que os Punks sequer existissem; por isso tanta devoção dos seguidores do movimento para com os quatro rapazes.

Assim, sem saber direito e sem planejar muito, os Ramones foram surgindo como alternativa ao glamour do Rock dos anos 1970 (Disco, Metal, Hard, Progressive), em que se competia em esmero e minúcia geral: do arranjo harmônico a mais breve nota dissonante num exato compasso; do vestuário ao equipamento; das influências aos produtores... tudo num show de Rock, nesses anos, era motivo pra competição e virtuosismo. E os Ramones mal sabiam tocar e cantar ao mesmo tempo. Dee Dee achava muito difícil tocar baixo enquanto cantava; Joey, o mesmo com a bateria. Então decidiram que Joey somente cantaria, e encontrariam outro pra assumir as baquetas do grupo. Só aí é que Tommy foi incluído entre eles, cada qual com seu mínimo texto, sua mínima variação, seu mínimo capital, mas com pose, vontade e atitude de sobra. Não deu outra, a simplicidade e rusticidade fez sucesso imediato e se alastrou feito fogo em rastilho de pólvora; no ano seguinte chegava aos bares ingleses, e, em mais dois anos, as bandas do Reino Unido já eram mais próprias, prósperas e proprietárias do Punk que os próprios Ramones. A Democracia inicial do bom e velho Rock'n'Roll estava de volta no jeito e na voz dos becos das cidades.

Em 1975, apenas um ano depois da primeira apresentação, já assinavam contrato com a Sire Records e, no ano seguinte, gravavam seu primeiro álbum, "Ramones", com o qual excursionaram pela Inglaterra e outros países da Europa. Fizeram igual sucesso por lá e acabaram por influenciar, ainda mais, as bandas que já tinham conhecimento de seu trabalho e com quem partilhavam o mesmo gosto estético e postura ideal, principalmente os Sex Pistols, da mesma linha estética, e The Clash, que dava os primeiros passos no Showbiz e ainda bastante aberto a novidades.

O ano de 1976, para os Ramones, foi intenso: além de gravarem seu primeiro álbum, fizeram a primeira turnê pela Europa e viram brotar as primeiras sementes do que seria a estética, a ideologia e a atitude de um jovem Punk, este que, mais tarde, estaria nas universidades e no mercado de trabalho.

"RAMONES" (o Álbum)

"Aqueles eram os caras mais esquisitos da área ..." (Siliane Vieira)

A música que faziam era em total dissonância com o glamour e o virtuosismo do Hard, do Progressivo ou do Disco da época.

Os caras eram os mais desleixados e despretensiosos que o Rock já vira.

As letras eram o mais simples e o mais direto quanto fosse possível.

O público era o mais marginal e abandonado de Nova Iorque.

A ideologia era a mais violenta e radical que já se teve notícia.

O disco era o de custo mais baixo e de produção mais inexistente do mercado.

Assim aparecia para o grande público o primeiro álbum dos Ramones, "Ramones", em 1976. Gravado e mixado em recordes 7 dias, não custou mais que míseros 7 mil dólares, mas também não chegou a 7 mil cópias vendidas: fracasso para o mainsrteam, mas uma vitória pra todo garoto pobre e estranho de Nova Iorque, e, mais tarde, pra toda uma geração que, embalada nas guitarras distorcendo acordes que pouco variavam as riffs, percebeu o quanto estava sendo posta de lado, simplesmente por que não 'havia' lugar pra todos.

O disco abria com a primeira canção composta e gravada pelos Ramones, "Blitzkrieg Bop", que, aos gritos de "Hey ho, let's go!", pretendia incentivar o ouvinte a tomar o tempo em suas mãos, mesmo sem saber muito por quê ou pra quê. A canção acabou por se tornar um hino dos Ramones e da juventude Punk, indispensável na abertura de toda apresentação do grupo. 

A canção mostra a juventude se unindo pra agir não por que gosta ou quer, mas por que "They're going through a tight one" (estão indo junto com um vento forte), estão agitados com as mudanças, mesmo sem saber exatamente o que são e no que vão dar. o Certo mesmo é que é preciso mudar.

"Shoot'em in the back now
What they want, I don't know
They're all raved up and ready to go"

(Ramones - Ramones - Sire Records; New York, abril de 1976)

(Acerte-os nas costas agora / O que eles querem, eu não sei / Eles estão todos agitados e prontos para avançar)

Tão rápido quanto o acontecimento sem explicação da primeira canção seria a ação sugerida pelos Ramones na segunda faixa "Beat On The Brat". Aqui também não é dada muitas explicações de por que algo acontece ou por que se deve agir de determinada maneira, simplesmente se faz o que dá pra fazer, já que não há alternativa:

"Beat on the brat
Beat on the brat
Beat on the brat with a baseball bat
Oh, yeah!
What can you do?
With a brat like that always on your back
What can you lose?
Lose?"

(Ramones - Ramones - Sire Records; New York, abril de 1976)


Esta é a letra completa da canção, que diz pra bater no garoto com um bastão de basebol, pois seria o único modo de tirá-lo das costas de quem o carrega. A princípio pode até parecer apologia à violência, mas não se deve esquecer que os garotos em questão poderiam ser os próprios Ramones e a juventude da qual faziam parte, os que apanhavam em casa e nas ruas por serem desajustados. Portanto seria só uma constatação do que já ocorria na América daqueles tempos.

Em "Judy Is A Punk", a ironia e o sarcasmo, minhas preferências no que indica expressão de inteligência, colocam dois personagens lado a lado em uma viagem que talvez termine com a morte de ambos. Duas coisas interessantes já no princípio: a canção chama-se "Judy Is A Punk", mas trata de Jack, que é um Punk, "Jack is a Punk", e Judy, que é uma anã "Judy is a runt", ou seja, Judy, além de anã, é também Punk, só não se sabe se por influência do tal Jack ou então só por estar junto dele e, por isso, ser considerada como ele. Também, por isso, correndo risco de morrer junto com Jack, por ser confundida com uma Punk. A segunda coisa interessante é justamente o fato de colocar dois personagens como esses juntos: dois renegados da sociedade. O Punk, por ter escolhido ser assim, mereceria morrer; a anã, por ser fruto do acaso da natureza, e por ser igualmente estranha, não mereceria além dos habituais escárnios, mas, junto de um Punk, poderia morrer sem maiores consequências sociais ou legais.
Outra coisa interessante, e muito, da letra é a ironia sarcástica feita com o próprio Showbiz (o mesmo que se mantém com Show de Horrores) que consiste em agregar trechos que ensinam o ouvinte a acompanhar, com destreza, a canção, avisando quando a letra mudaria pra uma próxima sequência: "Second verse, same as the first." (Segundo verso, igual ao primeiro); "Third verse, different from the first." (Terceiro verso, diferente do primeiro). Assim, já no álbum ouvido em casa, o consumidor já teria certeza de quando deveria cantar as partes da canção. Isso também mostraria o quanto os Ramones foram influenciados pelos grandes astros pop das décadas anteriores e o quanto pretendiam, mesmo estranhos, serem também parte desse universo - sua ideia para a capa do primeiro disco, este que está sendo analisado aqui, era uma foto dos quatro que lembrasse o disco "Meet The Beatles", capa clássica dos Beatles.

E a violência, praticada contra os sujos e esquisitos Punks, continua sendo a tônica da temática.

Mas, apesar de tudo, os Punks querem amor: o que todos buscam.

Com "I Wanna Be Your Boyfriend" (Eu Quero Ser Seu Namorado), tomamos o primeiro contato com o coração desses 'vagabundos'. O amor e o romance, aliás, são tão constantes na temática ramone quanto a violência e o uso de entorpecentes (Sex, Drugs & Rock'n'Roll).

E o amor, assim como tudo para eles, é tão simples e sem necessidade de maiores explicações quanto um bastão de basebol pra se livrar de um garoto indesejado.

Os Ramones, a fim de conquistar o amor da garota, apenas expõem seu desejo, sem muita argumentação, sem prometer nada e, acima de tudo, sem se maquiarem: simplesmente dizem:

"Hey, little girl
I wanna be your boyfriend
Sweet little girl
I wanna be your boyfriend
Do you love me babe?
What do you say?
Do you love me babe?"

(Ramones - Ramones - Sire Records; New York, abril de 1976)

Ou seja, quase literalmente, eu quero ser seu namorado; você gosta de mim? O que me diz?


Assim, o modo Punk de ser e estar ia tomando forma: tudo o mais simples possível, sem sofrimento, sem conjecturas e sem demasiados alongamentos ou aprofundamentos, o mais puro afair juvenil.

Na faixa cinco,  "Chain Saw", expressão clássica do surrealismo pop da segunda metade do Séc. XX, os garotos conseguem aliar o gosto por coisas estranhas - como o filme "Massacre da Serra Elétrica" - com o amor impossível bem ao modo romântico. A letra fala de um garoto que se descobre  apaixonado porque, sempre que desocupado, se flagra pensando em uma garota que já não pode ter mais, mas também sem explicar muito sobre isso, ou sequer explicar qual seria a relação desse fato com o tal "Massacre da Serra Elétrica", talvez pelo ato violento da separação de partes feitas juntas: o eu-lírico afirma que sua garota lhe foi roubada. Ou talvez qualquer outra conjectura inalcançável pra este pobre que sou por não partilhar do mesmo gosto por estranhezas como os Ramones e os Punks de verdade em geral partilham.

Detalhe: é uma das letras mais longas da Banda, mas mantendo o artifício da repetição exagerada em muitos dos versos.

Abandonando a violência e o amor, mas sem deixar de lado a estranheza - sempre presente -, surge a primeira das negativas dos Romones neste disco, conhecidos por composições em série sobre o comportamento binário do querer e do não querer (I Wanna... / I Don't Wanna...), boa porcentagem das letras de suas canções tem uma destas declarações como mote.

Porém "Now I Wanna Sniff Some Glue" , apesar de expressar algo que quer, não se afasta ainda do niilismo, pois o que o eu-lírico quer, e afirma que todos os garotos também querem, é cheirar cola como passatempo; mas, refletindo sobre o ato, cheirar cola, na verdade, seria o mesmo que negar a vida e também o fazer algo, já que, entorpecido, não se pode fazer nada com dedicação e destreza e o exagero acarretaria o risco de morte. Portanto, cheirar um pouco de cola seria também destruir o estabelecido, inclusive o próprio indivíduo 'agente'. 
Mas esse niilismo também pode ser lido de outro modo; o eu-lírico afirma que quer algo pra fazer - assim como todos os garotos -, não tendo, pois o sistema não lhe garante as devidas oportunidades de desenvolvimento e de crescimento, melhor, então, seria cheirar um pouco de cola pra, entorpecido, não pensar, e não querer mais isso, diminuindo sua expectativa de vida, que já é tosca, sem propósito, sem objetivos e com raros momentos de prazer.

"I Don't Wanna Go Down To The Basement" mostra a faceta do terror (apesar de já ter sido levemente mostrado em "Chain Saw"), parte integrante dos gostos dessa geração que cresceu nas ruas americanas das Décadas de 1980 e de 1990. Na canção, um garoto apela ao pai, afirmando que não quer descer ao porão, pois este teria algo que o deixaria morrendo de medo. Mais uma vez, maiores explicações não são dadas, sinal de que um ouvinte de Ramones deve ser alguém de inteligência extremamente aguçada e atenção contínua, de modo que não é preciso muita informação pra entender e compor uma conclusão a respeito do que querem expressar os Punks de Nova Iorque.

Pra confirmar, "Loudmouth", rápida e curta, reclama da garota 'tagarela', que atormenta tanto que provoca pensamentos violentos no interlocutor, que ameaça bater na tal caso não se cale.

Alguém que não se importa com maiores explicações, ou não gosta mesmo, também não se empenha em dá-las, e, igualmente, não gosta de dá-las; assim como também não deve gostar de quem delas necessite.

"Well, you're a loudmouth, baby
You better shut it up
I'm gonna beat you up
Well, you're a loudmouth, babe"
(RamonesRamones - Sire Records; New York, abril de 1976)
(Você é uma tagarela, querida / É melhor você calar a boca / Eu vou te dar porrada / Porque você é uma tagarela, querida)

Em "Havana Affair" (Cuba: papo de interesses políticos), como se já fossem engajados no Movimento Anarquista ou no Movimento Punk (que engatinhava nesse tempo), os Ramones, com sacada genial, digna de qualquer grande mestre da arte da crônica, cantam o caso de um cubano que, durante a Crise de Mísseis, se aproveita do fato pra passar pro outro lado e guiar os EUA em sua investida sobre a ilha comandada por Fidel, em troca, lógico, de algo mais do que as bananas que colhia anteriormente para seu sustento. Isto na primeira parte da canção. Na segunda parte, é contada a história de um americano fazendo o caminho inverso e pelo mesmo motivo: indo para Havana a fim de julgar um show de talentos, aproveita pra espionar do mesmo modo que seu parceiro cubano e em troca da mesma paga.

A grande sacada e maior crítica, maior até do que o fato de pessoas simples e sem ideologia se aproveitarem de um fato político pra se darem bem (nada a ver com o Brasil e seus brasileiros), é o pagamento dado para ambos os espiões: "Baby, baby, make me a loco / Baby, baby, make me a mambo", ou seja, garotas, drogas e diversão. A guerra se aproveitando do preço barato pelo qual se vendem os que não se interessam em tomar partido.

A décima faixa, "Listen To My Heart", é perfeita pra qualquer festa, cabe muito bem na casa de quem só quer balançar o esqueleto sem se preocupar com mais nada. Canção que abusa das anáforas, deixando pouquíssimo espaço para  variações, e conta sobre mais um caso de amor que não teria se realizado, por enquanto, mas sem tragédia, sem drama, num tom de muita naturalidade, alegre até eu diria. Aliás, esse tom alegre nas canções de "amor" dos Ramones, mesmo naquelas que falam do "amor" não correspondido, a grande maioria (como na vida real), é uma característica da banda que mais me agrada; me parece uma continuação, bem adaptada, das primeiras canções dos Beatles e da muito citada "Help", pelo mesmo motivo: Tom alegre pra uma situação amorosa difícil.

A maior polêmica do disco surge em "53rd & 3rd", que seria uma autobiografia de Dee Dee Ramone e sua passagem pelas ruas de Nova Iorque como garoto de programa. O tema seria polêmico até os dias de hoje, afinal é uma questão moral não se vender desse modo, mesmo em caso de necessidade. Porém o eu-lírico do poema vira esse jogo invertendo a questão moral ao afirmar que, desse modo, provou que era macho pra qualquer um, tendo inclusive a polícia atrás de si por causa disso; e todos sabem que ser fora da lei não é coisa pra bichinhas: "Then I did what God forbade / Now the cops are after me / But I proved that I'm no sissy"


"Let's Dance"  (Chris Montez), foi o primeiro cover do primeiro disco dos Ramones; a maioria deles, depois, teria também sua singela homenagem, e, pra confirmar suas intenções, era o seu modo de tocar um conhecido hit do início da década de 1960, apogeu do Rock'n'Roll. A canção, também para festas (no modo Ramone ficou ainda mais animada) é uma repetição infinda de um longo refrão encabeçado por dísticos quase que idênticos sobre um convite pra dançar que serviria bem em qualquer situação (pra garota sozinha, pra garota entediada, pra garota feliz, pra garota chateada...) solução pra tudo era dançar: de todo jeito possível. 

"I Don't Wanna Walk Around With You" é só isso. Não. Pera! É também "So why you wanna walk around with me?". E acabou.

A outra polêmica do disco fica por conta de "Today Your Love, Tomorrow The World", em que o eu-lírico se compara a um garoto "nazi" alemão conquistando o amor de uma garota e afirmando que isso não pararia com ela, que seu objetivo era conquistar o mundo. A polêmica é pelo fato de envolver a ideologia nazista na canção como algo, de certa forma, positiva. Mas, literariamente, é só uma alegoria pra uma conquista: no caso do eu-lírico, uma garota, depois seriam as do mundo todo; no caso dos nazistas, a Alemanha, mais tarde (em teoria) todos os países do mundo; no caso dos Ramones, o CBGB, depois todos os bares do mundo; no seu caso...

E por isso a canção é genial, por que usa elementos da realidade renegada (estética Punk) pra explicar um fato, um pensamento, uma sensação, um sentimento. Ele, o eu-lírico, é um garoto nazi alemão por que foi humilhado por aqueles que o venceram e, por isso,  pretende ir a forra, do modo que pode e que aprendeu.

"I'm a shock trooper in a stupor
Yes I am
I'm a Nazi schatze
Y'know I fight for fatherland
Little German boy
Being pushed around
Little German boy
In a German town
Eins, zwei, drei, vier
Today your love, tomorrow the world
Today your love, tomorrow the world
Today your love, tomorrow the world
Today your love, tomorrow the world
Today your love, tomorrow the world"
(Ramones - Ramones - Sire Records; New York, abril de 1976)

Mas, num resumo geral, é um disco pra se divertir e também pra se rebelar; é um disco pra refletir e também pra dançar; e manda um recado de atitude e despretensão perante tudo e todos, e não de pacifismo e apego: se me tratar com desprezo e violência, assim farei com você; se nos amamos, ficamos juntos, se não nos queremos mais, nos separamos; se o mundo tá ruim, vamos destrui-lo e começar tudo de novo... sem muito papo, sem muito enfeite e sem mais delongas, por favor!

 OUÇA BEM ALTO!





REFERÊNCIA


PUNK








RAMONES (BANDA)





RAMONES (DISCO)




CRÍTICA RAMONES












ANÁLISE















sábado, 8 de outubro de 2016

O MAL (Juliana Cortes)



                          O MAL


PRA OUVIR E SENTIR E REFLETIR


Juliana Cortes  é nome do bom vento que vem das bandas do Sul, aquele que traz frescor às noites quentes e movimento brando às águas mansas.

Misturando só o que vale a pena de tudo que pode fazer parte de um objeto musical, faz qualquer ouvido, antes maltratado pelo que a grande mídia teima em nos fazer engolir, entrar no modo "sou feliz porque existo" tamanho o capricho em cada detalhe, por menor que seja, que a moça e seus influentes companheiros põem no produto final: o CD, se é que se pode chamá-lo assim, melhor seria chamá-lo obra prima.

A própria Juliana diz que o gênero das canções que faz e interpreta se encaixa em Word Music ou Jazz, mas isso é pura conveniência, pois é música e ponto, nela cabendo o mesmo Jazz, a milonga, um quezinho de Rock e Pop, os sotaques tantos da música do Brasil e tantas outras modas que deixo pro leitor/ouvinte identificar: a surpresa ainda é a melhor forma de sedução.

A curitibana gravou seu primeiro disco em 2013 (Invento), mas, segundo ela mesma, desde menina já estava no meio musical: cantando em corais, participando da gravação de discos infantis, se enturmando com a galera da pesada no ramo; tanto que acabou cruzando com Vitor Ramil, um dos expoentes da música brasileira que vem sendo feita no Sul do país desde a virada do milênio; aliás, "Longe das Capitais", o Sul nos tem presenteado com música pra lá de refinada há um bom tempo, e o sabor só tem melhorado com o passar dos tempos.

O encontro com Vitor Ramil (além do encontro com Moska, Dante Ozzeti, entre outros) só se deu no segundo trabalho (Gris - 2016), mas, por conta, já estudava sua "Estética do frio" para compôr a estrutura de suas canções e orientar sua carreira, valendo até uma parceria em "Gris" com poema de Paulo Leminski musicado por Ramil.

A letra, aliás, é também ponto fortíssimo nas canções de ambos os discos, impossível eleger o que, no trabalho de Juliana, se destacaria mais. Enquanto a composição harmônica e rítmica sossega, tranquiliza faz do ouvinte realmente ouvinte, a letra o (e)leva pro lugar onde a beleza da lógica e da novidade residem. Prestar atenção no que diz o texto das canções é iniciar reflexões e transcendências, às vezes lado a lado, às vezes não.

"Filosofando" (Invento - 2013), por exemplo, traz, na letra, a beleza que transcende e a lógica que ilumina, contando de um passarinho que, observado, deixa o eu-lírico extasiado com a epifania que lhe desperta: sem ter nada de seu, tem o céu azul onde voa e o  verdejar das árvores em que pousa, tendo assim "muito mais" que aquele que canta. Pra parar e pensar.

Agora, em 2016, sua voz levemente grave e agradavelmente doce está em "Gris", segundo álbum de Juliana Cortes, com parcerias que deixariam qualquer bom ouvinte interessado em conhecer.

Entre elas, "O Mal", com Arrigo Barnabé, que também participou da gravação, foi escolhida para o primeiro clipe do disco. A canção, lenta e ligeiramente suingada, diz de alguém que, pela primeira vez, encontra o mal em si, como se agisse criminosamente, sem nunca ter pensado nisso, por obrigação da realidade que se lhe apresenta. No vídeo clipe, diferentemente da faixa no álbum, a letra não se repete, é cantada apenas uma vez; porém dá algumas dicas de significados que a audição não nos ajuda a decifrar. Junto com a introdução da música, há, na tela, dois grandes olhos que se abrem repentinamente e que se mantêm arregalados por alguns segundos, quando é feito um corte para um quarto sombrio e simples, passando, a seguir, para tons de vermelho e marrom. Interessante é que no quarto há uma garotinha que desperta e se levanta (logo depois de desaparecerem aqueles grandes olhos da introdução) e esta é a Dorothy  de "O Mágico de Oz" (1939); quando a garotinha sai do quarto onde despertara, a cena muda para preto e branco, ela continua caminhando, e muda novamente par os tons de marrom e vermelho, ela se assusta com uma TV ligada à altura do chão e para pra olhar como se não soubesse do que se tratava. O clipe segue misturando elementos míticos e de fantasia, algumas apenas ilustrando o dito na letra, até que, no final, a menina Dorothy  é colocada em uma queda livre como aquela da famosa Alice no "País das Maravilhas". Entre anjos caídos, Dorothys despertas enfim e Alices em novo mundo, pode-se dizer, com a ajuda do vídeo, que esse mal era latente e necessário pra continuar a jornada heroica.

A parceria com Ramil e Leminski também é imperdível. "O Velho Leon e Natália em Coyoacán" pode referir-se a Leon Trótzki em sua passagem pelo México, onde foi assassinado por espiões russos, após ter fugido da perseguição de Stalin, usurpador do poder quando da morte de Lenin, que preferia como sucessor o camarada morto em Coyoacán. Assim pode ser entendida, além de com as marcas presentes já no título da canção, também por causa das palavras do poema, que contam de um dia que nunca mais se repetiria como um que já houvera em Petrogrado antes, cidade tomada pela revolução bolchevique em 1917.

"Saia Azul" (Dante Ozzetti/Chico Cesar), diz de alguém que tem em uma saia comprada por alguém que deixava as Minas Gerais pra não mais voltar e que se contenta em demasiado ao usar a tal saia comprada ao deixar a terra natal.

Mas tiro certeiro foi mesmo com "Indo ao pampa" (Vitor Ramil), equilibrando suavidade e gravidade tão bem que tem-se a impressão de flutuar ao ouvi-la; isso sem falar nas genialidades usadas no texto, genialidades como: "Quase ano 2000, / mas de repente avanço a 1838 (...) /  porque os homens por ali estão pra lá dos anos 2000", ao falar de alguém que retorna os pampas do Rio Grande do Sul; um pouco mais adiante, seguindo o refrão "eu indo ao pampa, o pampa indo em mim", representação certeira do que é a felicitação de reencontrar algo que vive dentro mesmo que esse algo esteja demasiado longe.


Se você ainda não conhece Juliana Cortes, não se demore em conferir suas obras primas: é prazer garantido; mas não se esqueça, só fará efeito se ouvir sentado, tranquilo e com tempo: pra pensar e sentir.




REFERÊNCIA


JULIANA CORTES

CRÍTICA