sábado, 10 de dezembro de 2016

ALUGA-SE




1980

O ano era 1980. Depois do grande sucesso de "Há Dez Mil Anos Atrás" (1976), dos razoavelmente populares "Raul Rock Seixas" e "O Dia Em Que a Terra Parou" (ambos de 1977), aconteceram  "Mata Virgem" e "Por Quem os Sinos Dobram" em 78 e 79, com pouquíssima repercussão na crítica e no público; eram os primeiros com ausência total do antigo parceiro Paulo Coelho e aqueles em que Raul mais se distancia do bom e velho Rock'n'Roll para produzir discos mais conceituais e com letras mais profundas e elaboradas. Esse Raul Seixas mais "cabeça" do que antes não agradou tanto; e a WEA, gravadora e distribuidora da obra de Raul, decidiu cancelar o contrato com o Maluco Beleza. Assim, Raul foi bater na porta da antiga gravadora em que trabalhava como produtor musical, e que não lhe abrira espaço pra trabalhar como compositor e interprete, a CBS, pra lhe propor abertura de contrato. Conseguiu. No mesmo ano seria lançado "Abre-te Sésamo" contendo "Aluga-se" e "Rock das Aranhas", canções que caíram no gosto do público, e impulsionaram a venda do LP, mas que tiveram execução proibida pela censura: a primeira, por ser explícita quanto à opinião do compositor sobre o política econômica vigente; a segunda, por ser explicita quanto ao que o mesmo pensava a respeito da homossexualidade feminina (com detalhes metafóricos bem fáceis de entender).

O ano era 1980 e Reagan era eleito nos EUA, dando início ao endurecimento da Guerra Fria, da Guerra Contra o Narcotráfico, da Guerra Contra os Movimentos Populares e da Guerra pela Moral e pelos Bons Costumes. Reagan, com apoio da CIA, traria às vistas a infiltração e a influência do governo estadunidense em todos os países da América Latina, enviando tropas, inclusive, para grande parte deles, além de ajuda financeira e especializada em repressão para outros, como o Brasil por exemplo.

O ano era 1980. John Lennon foi assassinado. Vinícius de Moraes morreu dum mal súbito. O enlatado "Bozo" estreou no Brasil, programa que exibiria, 3 ou 4 anos depois, a versão brasileira para "El Chavo del Ocho", programa cancelado no México nesse mesmo 1980.

Em 1980, o Papa João Paulo II desembarca no Brasil para sua primeira visita ao país.

Em 1980, são fundados: PDS, PMDB e PT, principais partidos políticos no Brasil até meados dos anos 1990.

Era 1980 e Raul Seixas já havia sacado o que a elite pequeno burguesa do país pretendia como projeto econômico e social para o Estado brasileiro: "alugar o Brasil".


"Aluga-se"

A canção começa com batida forte e tribal na bateria do bom e velho Rock'n'Roll chamando a  riff e a introdução da guitarra, com overdrive bem distorcido; é pra deixar qualquer ouvido muito atento, pra levantar do chão aquele que por ventura ainda esteja deitado sobre sua falta de sentido e perspectiva. Estando o ouvinte já atento, o eu-lírico, genialmente, passa a afirmar que tem uma "solução" pros males do "povo":

"A solução pro nosso povo
Eu vou dá"
(Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)

E continua mostrando as vantagens antes de citar a tal "solução" salvadora:

"Negócio bom assim
Ninguém nunca viu
Tá tudo pronto aqui
É só vim pegar"
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)


Só então, no último verso da primeira estrofe, é que se ouve aquilo que se deve fazer pra sair da pior:

"A solução é alugar o Brasil!..."
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)

Depois disso, entra o refrão dizendo mais das vantagens e facilidades de "alugar o Brasil" "pros gringo entrar":

"Nós não vamo paga nada
Nós não vamo paga nada
É tudo free!
Tá na hora agora é free
Vamo embora
Dá lugar pros gringo entrar
Esse imóvel tá pra alugar"
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)


Ou seja, ainda se poderá viver neste país exuberante e farto de delícias deixando os estrangeiros ficarem também por aqui a pagarem um quinhão por isso. O que é hoje bem verdade se colocarmos o discurso desse eu-lírico na voz desses que estão aqui a "vender" bem barato o povo, o minério, o chão e a paisagem do Brasil. Mas, veja bem, este "negócio bom" é só vantajoso pra elite que se põe a "representar" o território e a nação, sobrando, para o povo, trabalhar muito, até perder a vitalidade, e receber muito pouco em troca.

Na segunda estrofe, a argumentação sobre as vantagens continua ao citar as belezas naturais, que seriam ótimos atrativos para o estrangeiro disposto a gastar seus preciosos dólares por isso:

"Os estrangeiros
Eu sei que eles vão gostar
Tem o Atlântico
Tem vista pro mar
A Amazônia
É o jardim do quintal
E o dólar deles
Paga o nosso mingau..."
 (Raul Seixas - Abre-te Sésamo - CBS Discos; RJ, 1980)

E segue a repetição do refrão até o fim da música pra enfatizar as maravilhas de se fazer nada e se ter tudo ainda assim; mole , mole, vivendo de dividendos e lucros no Brasil. Eis o projeto de Estado que vamos vendo realizado no país por quem tacha de vagabundos artistas, trabalhadores rurais, aposentados, professores, líderes de causas sociais, e tantos outros que lutam por igualdade e justiça.

Há mais de trinta anos, Raul Seixas já percebera o que hoje vem se concretizando no Brasil: uma elite egoísta e burra fazendo o possível pra se dar bem às custas de um povo sofrido e sem representação e de um território imenso e desprotegido. Tudo isso foi cantado por ele na forma mais bufa e irônica que alguém pode conceber, especialidade de Raul.

Será que o fim dessa canção será mesmo trágica?


REFERÊNCIA


1980



"Abre-te Sésamo"



"Aluga-se"


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