domingo, 4 de setembro de 2016

CONVOQUE SEU BUDA

Convoque Seu Buda


"O clima tá tenso"

Em 2016 a gente tem mesmo é que convocar, cada um, o seu Buda; parece que é a única saída pra tanto retrocesso e tanta sensação de falta de movimento, e "Convoque Seu Buda" é melhor trilha pra se encontrar no meio da total confusão em que se é obrigado a viver sem saber direito por quê.

Terceiro álbum de estúdio de Kleber Cavalcante Gomes, nascido na Grande São Paulo em setembro de 1975, é diferente dos anteriores na forma e no tratamento, porém o conteúdo, contundente, continua sendo sobre as dificuldades enfrentadas pelo povo pobre da periferia de São Paulo, que não deve ser lá muito diferente daqueles de outras capitais.

Vindo do movimento Hip Hop da Capital do Estado, ainda faz Rap, ainda se diz rapper, mas com alguma diferença e muito mais brasilidade; menos pesado, mas não menos direto, que os primeiros discos, "Convoque Seu Buda" tem uma sonoridade, e vocalização, mais suave e suingada, com influências do Raggae, Samba, Soul, Repente e muito mais.

Desde "Nó na Orelha", disco anterior, Criolo já deixava sua criatividade flutuar sobre a lama da mesmice do Hip Hop ao introduzir instrumentos da música pop na construção dos arranjos das canções; com baixo, guitarra, metais e bateria, o Rap de Criolo deu um salto quântico pra fora do Grajaú em direção às Capitais do Brasil e do exterior.

O CD, que desde a capa mostra a riqueza, e aparente falta de nexo, de informações a que se propõe a dar o compositor a quem sem atreva a tentar decifrá-lo. Porém não é só pra quem pode, e sim pra quem sabe, pois foi disponibilizado, como o anterior, em muitos meios de comunicação pra quem quisesse acessar e baixar; tê-lo foi fácil, dominá-lo é que foi o negócio. Isso por que o Criolo continua não facilitando, do mesmo modo que ninguém facilita nada pra quem vem de baixo; as letras são carregadas de informações argumentativas e imagéticas, e neste disco a sonoridade vai no mesmo rumo; detalhes, detalhes e detalhes a aprimorar-lhe o prumo.


Como não devia deixar de ser, a primeira canção do CD é a que traz também o nome do álbum, "Convoque Seu Buda". Inicia, inteligentemente, com sons de passarinhos cantando (bucolismo) seguindo passos fortes e secos de alguém que corre (fim da calmaria) e finalizando com um grito de guerreiro oriental das artes marcais e o som de uma espada entrando a ação; só então é que a canção realmente começa, com batida forte, seca e lenta, e riffs de pianos elétricos em dissonância dando o tom e o andamento pro vocal que anuncia: "Convoque seu buda / O clima tá tenso", e continua argumentando com imagens que remetem à violência das ruas. A canção parece se referir a tentativa de expulsão dos moradores de rua do Centro de São Paulo pra possibilitar a exploração e especulação imobiliária, o que, segundo o eu-lírico, poderia acabar em tragédia, já que o problema não seria resolvido ao se tirar de lá os abandonados do sistema: estes teriam que ocupar outro lugar.

O refrão volta ao tema espiritualidade, como salvação, ao citar:

"Nin Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu jitsu / Shiva, Ganesh, Zé Pilin dai equilíbrio / Ao trabalhador que corre atrás do pão / É humilhação demais que não cabe nesse refrão"
 (Criolo - Convoque seu Buda - Oloko Records; São Paulo, 2014)


Na verdade, o refrão mistura nos mesmos versos: violência (lutas marciais) e religião (santos e deuses), únicos protetores de quem se vê obrigado a lutar e resistir ao Estado.

Esta é uma das habilidades de composição de Criolo, unir objetos paradoxais o antagônicos aparentemente sem nexo, aprimorado e levado até o limite neste CD.


Na faixa dois, "Esquiva da Esgrima", o assunto é o mesmo: quem pode mais contra quem tem que seguir obedecendo, mas de um modo mais geral, não só contra aquele que está abandonado nas ruas do centro, mas contra todos que, por falta de alternativa, têm que seguir segurando o pouco que conseguem da riqueza do sistema e sem se importar com aqueles que nem isso podem ter, e não por que não se esforçaram, mas simplesmente por que não cabem todos. 

O refrão da música fala do que se perde ao ter que sobreviver no mundo do capital entre os que escolhem o crime e a violência pra também sobreviver:

"Hoje não tem boca pra se beijar 
Não tem alma pra se lavar 
Não tem vida pra se viver 
Mas tem dinheiro pra se contar 
De terno e gravata teu pai agradar 
Levar tua filha pro mundo perder 
É o céu da boca do inferno esperando você 
É o céu da boca do inferno esperando"
  (Criolo - Convoque seu Buda - Oloko Records; São Paulo, 2014)

Ou seja, ao entrar no mundo cão (do trabalho ou do crime) o sujeito se submete, pra ter o vil metal, a não ter humanidade.

Outra característica importante nas composições de Criolo é uso de trechos melodiosos cantados com voz aveludada e tranquila. Nos primeiros CDs, isso era feito em alguns trechos de cada canção, ou em canção inteira, "Amor em SP" (exceção à regra); mas neste o compositor abusou do recurso na maioria dos refrões, o que se mostrou ser uma bola muito dentro, pois, além de enfatizar com excelência a conclusão do eu-lírico, também funciona como meio de popularizar a canção, coisa que não deve ser menosprezada, já que o ideal de todo artista é ser reconhecido, sobretudo daquele que sente ter algo importante  a dizer.


Mas a parada genial do CD, no que diz respeito à letra, é faixa seguinte, "Cartão de Visita", em que o compositor lista produtos de requinte muito desejados por quem tem o poder aquisitivo compatível com tal consumo; porém, enquanto vai listando, vai também dando sermão em quem sente prazer com esse tipo de consumo sem se importar com o "indigente" que pede na rua o mínimo pra continuar vivo.

No refrão da canção, essa intenção é esclarecida mais diretamente:

"Acha que tá mamão, tá bom, tá uma festa
Menino no farol cê humilha e detesta
Acha que tá bom, né não, nem te afeta
Parcela no cartão essa gente indigesta
(Nem tudo que brilha é relíquia, nem joia)"
  (Criolo - Convoque seu Buda - Oloko Records; São Paulo, 2014)

A genialidade consiste em, com a ajuda de Tulipa Ruiz e Mano Brown, dar a entender que ele, o Criolo, também faz parte deste produto a ser consumido, pois, antes totalmente desconhecido, agora anda também na boca e nos ouvidos dos consumidores das classes mais altas, ávidos por novidades, de requinte; assim como ele também agora passa  a frequentar a mais "fina estirpe" com seu "Convoque Seu Buda" no bolso, CD de "Elegância no trato" como "Cartão de Visita" de quem "trabalha no buffet".

Outro indicativo de ser uma canção sobre a condição também do próprio compositor é a citação de uma entrevista a Lázaro Ramos onde Criolo tentava explicar sua ideia a respeito da falta de bom senso em classificar as pessoas em classes como fossem tipos de leite (A, B, C), fato que virou piada na internet: "A alma flutua, leite a criança quer beber / Lázaro, alguém nos ajude a entender". Quer dizer, o próprio Criolo também faria parte da "Classe C" emergente, devendo também tomar cuidado pra não cometer os mesmos erros da elite: achar que tá bom mesmo com muitos ainda na pior.


"Casa de papelão" usa da anáfora "olhos nos olhos" pra descrever um morador de rua que tem como amigos nada além de um cão e de um cachimbo. Parece mais uma vez falar do caso dos indigentes do centro de São Paulo que foram realocados para que pudesse se concretizar ali a especulação imobiliária.

O mais interessante é que a canção também pode ser entendida como um diálogo intertextual com pelo menos duas canções de Chico Buarque feitas na época da ditadura como meio de burlar a censura: "Olhos nos Olhos" e "Deus Lhe Pague"; "Olhos nos Olhos", obviamente por causa da anáfora usada e "Deus lhe Pague" por causa do andamento, do tom de quem segura algo que cresce e por causa do instrumento usado no arranjo principal (flugelhorn), inclusive com algumas frases que lembram muito aquelas gravadas no disco "Construção" de 1971.

Outro indicativo de intertextualidade é que os versos de Criolo remetem a um futuro arrependimento daqueles que ocupam agora, com violência, o as ruas e prédios usados pelos que não têm onde ficar, como se algum ato de vingança pudesse vir destes no futuro; e o tom vingativo também é muito claro nas canções aqui citadas de Chico Buarque.

Esse, aliás, é o tema mais recorrente nas composições de Criolo, nesse CD ainda mais: a vingança de quem hoje se humilha pra continuar a sobreviver e pra que poucos continuem com seu luxo e prazer.

Também é interessante que o compositor, ao cantar a letra, o tenha feito de modo que parecesse mais tranquilo e suave, como em "Cartão de Visita", na música completa, e não só no refrão. O que expressa calma e certeza absoluta no que é dito, além de tornar o enunciado mais direto e palatável. Mais uma vez lembro que ser palatável, pra um artista que sente ter algo a dizer, não significa ceder à imposição da mídia, e sim alcançar maior número de ouvintes: quando se fala pra um gueto, se usa a linguagem do gueto; quando é preciso, e possível, falar pra mais gente, se usa a linguagem da maioria.


A ironia escrachada (já falei o quanto gosto de quem a usa bem?)  é dominante em "Fermento Pra Massa", crônica sobre os entraves causados por uma greve de ônibus. A tal greve teria atrapalhado coisa tão simples quanto o ato de comer um pão fresco de manhã cedo por que, por causa da cidade parada, o padeiro não teria chegado a tempo no trabalho pra fazer os pães pra comunidade.

O ponto de vista (que é o ponto em questão) é que faz aqui a ironia, enquanto a maioria reclama do fato de não ter como ir e vir por conta da greve, o eu-lírico se conforma, apesar de não gostar de "tumulto", e diz que não acha "um insulto  manifestação / pra chegar um pão quentinho com todo respeito a cada cidadão", ou seja, mais uma vez, Criolo toca no assunto principal do disco: se não for igual pra todos, de nada vale ter alguma coisa; de quê adiantaria ter pão fresquinho se o motorista do ônibus não tiver condição de ter sua casa com dignidade, assim como o próprio padeiro também deseja?


Mudando um pouco de assunto,  "Pé de Breque" traz todo o clima rasta pra dar sermão naquele que só procura o subúrbio em busca de prazer e de um baseado, mas sem o menor respeito pelo que seu uso representa pra aqueles que o tem como algo sagrado e transcendental. O eu-lírico, no fim da canção, segue repetindo  "Eu sei o que você quer", de um modo que daria medo a qualquer um que não soubesse o que teria daquilo que buscasse, procurou a periferia pra ter prazer, mas não sabe exatamente o que vai encontrar. A partir do título também é possível perceber que este que procura a quebrada por um pouco de prazer barato é também o responsável pelo atraso do lugar e das pessoas que nele vivem.


"Pegue Pra Ela" parece um baião metalinguístico (Criolo, nos CDs anteriores, usava muio a metalinguagem ao se colocar como cantor de Rap nas letras), pois fala de uma nova canção que deve ser levada pra um pessoa específica, que, não embarcando, vai ficar de fora dessa "nave" que leva uma "multidão"; ao mesmo tempo, também faz uma auto crítica ao afirmar que "Toda cultura vira comércio / É o ponto de degradação", isto é, mesmo sabendo que alcançar um público maior é importante, reconhece que é também quando começa a perder sua essência de artista de rua. Nos primeiros CDs, Criolo não se cansava de mostrar o quanto o Rap tinha sido algo fundamental em sua vida: como salvação e como atuação. Nessa nova metalinguagem pode haver um receio de que a essência do rapper se perca no processo industrial, feito ao gosto da geleia geral.


Em "Plano de Vôo ",  junto com Síntese, Criolo volta ao Rap 'de raiz', abusando das imagens misturadas dispostas a dar sentido a algo que, desde o início da canção, o eu-lírico afirma não conseguir explicar; uma colagem de muitos recortes da vida do suburbano da cidade grande, que é feita de recortes muitas vezes antagônicos em uma estranha harmonia. Parece sem nexo e sem sentido, mas só quem pega até quatro ônibus todos os dias pra trabalhar na Grande São Paulo entende o que é conviver e compreender as milhões de informações que invadem aqueles que são obrigados a viver com o que sobra do que o capital produz.


O Rap continua em "Duas de Cinco" cantando de novo a diferença entre quem aprende a viver com  o desprezo e com a violência desde muito cedo e quem vê tudo do conforto do condomínio através da TV e só conhece a realidade dos videogames. Aqui há também uma rápida citação do ato de fazer Rap como salvação dessa miséria: "Pra cada rap escrito / Uma alma que se salva".


"Fio De Prumo (Padê Onã)", que lembra muito um ponto de terreiro de Candomblé, usa da Língua Iorubá pra avisar que se trata de um hino de saudação e de luta. Com muitas imagens metafóricas ,mostra a cidade como o mal a ser evitado e o bem a ser conquistado. Em uma imagem bastante acertada, o autor diz: "A cidade, um cronista", ou seja, a cidade é que constrói suas crônicas, como poderia um cronista falar de outra coisa senão daquilo que a cidade lhe mostra? Como poderia o compositor de Rap de São Paulo falar de outra coisa que não fosse de desigualdade e do descaso vivenciado por todos em qualquer canto da cidade.


Enfim, "Convoque seu buda", que "o clima tá tenso". A cidade que produziu a riqueza e a ordem também produziu o abandonado e o caos, mas quer se livrar deles, por qualquer meio possível que seja rápido e barato, contudo essa solução final vai cobrar seu preço mais tarde, coitado daquele que agora ri, "comédia, vai chorar".



REFERÊNCIA


Criolo 



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